O exercício da fabulação

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Autor desconhecido, sem data.

“Conhecemos a tendência da mente de remodelar toda experiência em categorias nítidas, cheias de sentido e úteis para o presente. Mal termina a percepção, as lembranças já começam a modificá-la: experiências, hábitos, afetos, convenções vão trabalhar a matéria da memória. Um desejo de explicação atua sobre o presente e sobre o passado, integrando suas experiências nos esquemas pelos quais a pessoa norteia. O empenho do indivíduo em dar um sentido à sua biografia penetra as lembranças com um ‘desejo de explicação’”.

Ecléa Bosi, 1994

As lembranças que guardamos na memória também ressoam pelo exercício da fabulação.

Quem nunca abriu seu álbum de fotografias da infância organizado pela mãe ou parente próximo e “viveu” com os olhos histórias sugeridas, que passeiam pelas pessoas, lugares e objetos da cena fotográfica em um ritmo fluido, vagaroso e acolhedor da imaginação?

Ecléa Bosi, autora expoente no campo da memória, nos faz entender as congruências da vida que participam na construção da memória individual (suas considerações sobre memória coletiva valeriam um outro Citemos). Entretanto, Bosi argumenta não só sobre as particularidades da vida neste processo, mas também nossa busca pelo sentido do tempo. Vejo neste ponto, o tempo que não é linear (cronológico) e que “abraça” nossa existência como um invólucro que vai formando camadas.

Quando a referência foge de nosso controle, de possíveis informações, resta-nos um “desejo de explicação” às avessas. Sem identificação (nome, data, lugar, autoria, etc.) ficamos à deriva de nosso poder de articulação dos códigos/signos culturais do que vemos (ou que se atesta pelo índice), assim como da ordem técnica (suporte, papel, dimensão, emulsão). Retratos de outros sempre são sinapses de imersão em nosso próprio léxico de lembranças. Ajudam na compreensão do quão é formidável nos aproximarmos da imagem como metáfora de candura e laços afetivos. São tão adoráveis quanto complacentes com nossos sonhos especulativos.

O retrato desta bela mulher saiu de um álbum de família que desconheço sua origem, o qual guardo com respeito à sua protagonista. Talvez, isso seja uma maneira de desejar explicações.

Por Georgia Quintas.

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