Por que enxergamos as fotografias?

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Foto: Alexandre Belém – Vários Carte de visite numa parede de uma casa em Brejo da Madre de Deus (PE)

Se pararmos para pensar, as imagens fotográficas narram nossas vidas.

Quem já não buscou seu passado em papéis emulsionados guardados por parentes próximos e distantes? Quem já não lamentou por não encontrar o registro de fases e fatos de sua história? As imagens se configuram como relação íntima de pertencimento, identidade e sentidos, desde o surgimento da linguagem fotográfica no século 19. A fotografia e seu estatuto de valor testemunhal, diante da realidade, fez com que a representação e o tempo fossem observados como elementos incontestáveis. Passávamos a compreender essas imagens enquanto discurso dado, devolvido para a câmera fotográfica como espelhamento do contexto visível perante a realização de captura pelo fotógrafo.

No entanto, a imagem e todos os seus elementos visuais contidos nela discorrem apenas sobre o visível. E a pergunta retorna: quem nunca apreendeu, ao olhar um retrato materno, a doçura além da imagem? No campo da imagem fotográfica, o extraquadro – o que está além do enquadramento, da composição – narra a multiplicidade de valores simbólicos e de temporalidades. Pelas construções de significados e pelo vigor do arcabouço de memória, a expressão fotográfica desmembra a certeza única da prova do que vemos.  A intensidade dos retratos nos devolve lembranças  e caminhos percorridos – temporariamente adormecidos.

Pensamos, quase num ato espontâneo, que voltamos no tempo diante de álbuns, fotografias antigas ou não tão distantes. Nem mesmo os mais insensíveis, passam incólumes. Facilmente, o cheiro daquela cena retorna, o frescor do momento ressurge, as pessoas retratadas parecem nos cercar… Essa relação entre imagem e memória possui variantes teóricas. Uma delas é lembrada pela autora Ecléa Bosi, de inestimável importância para a reflexão sobre a memória, quando diz: “Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência”. Temos, portanto, a ruptura do antes com a reinvenção dos significados no presente. Ou seja, redimensionamos a história narrada pelas representações do corpo que se renova e investiga os sentidos da imagem.

Quando tudo isso ocorre no contexto do núcleo familiar ou afetivo, a imagem-memória é sempre recuperada, restaurada a partir dos eixos lapidares (e convencionalizados) do tempo e do espaço. E, claro, entre eles há o universo impregnado de passagens da vida. Mas, entretanto, o que ocorre quando a “paisagem” imagética não é da instância do privado e sim de outros? Como também de outros lugares, tempos e conteúdos que não pertencem a quem contempla determinada fotografia. O que acontece? Diríamos que o fator documental não se trata do ápice da imagem fotográfica. Ao desconhecer os meandros visuais, a sugestão do contexto social e histórico fornece dinâmicas àquelas fotografias que validam uma série de suposições, impressões, desejos, interação e discursos. Para o pesquisador a imagem fotográfica é de extrema relevância como fonte de pesquisa. Contudo, para os que não precisam investigar aspectos plausíveis em busca da compreensão desta linguagem como fenômeno social e cultural, a ficcionalização faz parte da interpretação do objeto fotográfico.

Passamos a ser sujeitos, mesmo que não tenhamos a mais vaga relação de identidade. Retratos de anônimos, paisagens desconhecidas, cenas sem muito sentido, temáticas idem… E os cartões-postais do começo do século 20? Muitas vezes retocados, pintados como recurso estético de beleza e fetichização, faziam parte de trocas simbólicas sensíveis comunicando momentos importantes a amigos e familiares. Quem nunca segurou nas mãos um postal com fotografia que no verso – em letras cursivas românticas – deixasse mensagem delicada para alguém ou que transparecesse a saudade por distâncias infames? Tal experiência é única. Pois, a percepção se apropria deste objeto e nos faz entrar como personagens silenciosos que tentam entender e participar daquele suporte, que perdura até hoje, pelo simples fato de lembrar-se e ser dedicado a alguém. O afeto, contido nos postais daquela época, evoca universos e atmosferas latentes muito próximos da poesia e de suas sublimações. E assim, criamos, inventamos, imaginamos,vislumbramos possíveis histórias e situações. Adentramos na imagem por intermédio de suas senhas-códigos visuais e, em franca simulação e encenação, experimentamos vivências, sensações e sentimentos.

A fotografia transcende o real porque consegue estabelecer mundos sensíveis. Ao acessar a percepção do indivíduo, a simbiose entre ilusão, imaginação e magia inerente à imagem fotográfica salvaguarda os múltiplos caminhos e dimensões simbólicas, subjetivas e da ordem do espírito. Se considerarmos que o olhar passa a desvelar o que observa – com a destreza de construir mundos e narrativas –, começamos a compreender que o estatuto ontológico da fotografia não é tão somente o espelhamento do real, mas, todavia, a extensão poética do que nossos olhos enxergam quando as fotografias têm alma e transcendem o visível. É isso: enxergamos fotografias porque elas são repletas de sentidos encantadores que rondam o invisível que residem nelas.

* Artigo publicado na revista Eita! #5, dezembro de 2010. Publicação da Gerência Operacional de Literatura e Editoração – Fundação de Cultura Cidade do Recife.

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