O peso de uma ilusão

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Fotos: Alexandre Belém – Clique para ampliar

Logo que vi e toquei o livro Peso Morto (Belo Horizonte, 2010), do fotógrafo mineiro João Castilho, tive a sensação de que um livro feito por um fotógrafo com sua produção visual, necessariamente, não é um livro de fotografia. Ou melhor diria, do que nosso olhar está habituado a apreciar em tal formato impresso.

Peso Morto, realizado através do edital Conexão Artes Visuais – Funarte, apresenta questões muito próximas das possibilidades de caminhar entre a potência física de um livro, da irredutibilidade simbólica do seu conteúdo e da contemplação estética que se espera encontrar nas imagens que nele estão. Esses pontos são factíveis em qualquer obra como uma tradição.

Entretanto, em Peso Morto, o processo de fruição com o leitor passa a ser decantado por seus pormenores (que são, na verdade o fio condutor do sabor das metáforas, da subjetividade e poética de investigação insciente de Castilho). Vou tentar explicar o livro enquanto forma.

Ele é pequeno – o que foge dos padrões recorrentes dos livros de fotografia – e apesar do volume que indica ser um calhamaço, a mão segura o peso de uma ilusão, leve e estranha ao que esperávamos. Deste primeiro contato sensorial, abrimos e logo temos uma pista da reflexão que o artista João Castilho imbrica em sua produção, ou seja, da pesquisa que evoca o próprio questionamento dos seus sentidos, de sua dinâmica entre fazer e projetar para o outro ou seria de encontrar e propor para o outro? Impasses como este percorrem a narrativa simbólica de Peso Morto.

Na epígrafe, Castilho transcreve uma pequena citação do artista expoente da Land Art, Robert Smitshon, de 1967. Na página seguinte, singelamente, Castilho diz: “Convidei quatro amigos escritores para que, olhando as fotografias que se seguem, escrevessem um texto”. É assim, bem didaticamente que o artista descreve o que encontraremos ao virar aquela página. O ritmo que se segue, portanto, é de imagens intercaladas pelos textos instigantes dos “amigos escritores” convidados: Vera Casa Nova, Marcelino Freire, Eduardo Jorge e Joca Reiners Terron. Cada um, ficcionaliza, lança itinerários no campo da literatura, os quais fazem com que as imagens ganhem movimento em nossa percepção.

Os mais duros podem pensar, então há mais “peso” na narrativa fotográfica nesse livro porque há belos textos? Há aspectos a serem observados nesta questão da linha editorial (explicitamente bem resolvida através da concepção do design) que é relevância de pensarmos em Peso Morto como um exercício de deslocamento da condição do nosso olhar. Nesse ponto, é profícuo o encontro entre a palavra e a imagem, entre a literatura e o imaginário, entre perceber o que outros podem criar a partir delas e do quão podemos avançar por si próprios.

Fotos: João Castilho – Clique para ampliar

Passei alguns dias, com esse livrinho do meu lado. Sinto dizer, para os que acreditam que, com os textos de tais escritores, as imagens de João Castilho passaram a ser cenários guiados, mais fáceis de contemplação, compreensão, induzidos por sugestões fantásticas… Que nada! Vera Casa Nova me trouxe uma possibilidade da paisagem, Marcelino Freire (como sempre) me deu um soco no plexo, Eduardo Jorge, erudição incrivelmente aplicável e Terron, narrativa poética fluida. Muitas ideias, conexões e sonhos.

As imagens de Peso Morto, esteticamente, são paisagens áridas que mostram sempre uma característica central: montes de pedras sejam em espaços desérticos sejam em frente de casas ou, literalmente, no meio do caminho. São esses signos improváveis que surgem na criação de João Castilho como análise além do mimético, do que indica pela forma. As pedras possuem a escala subjetiva de algo que é processual no trabalho de Castilho, procedimento criativo que está, muitas vezes, mais no rastro da imagem fotográfica do que nela mesma. Registro do acaso, de coisas que são agrupadas e interrogam o transeunte (sem muito sentido aparente); ou, quem sabe, de pedras agrupadas à procura de reflexão sobre tempo, razão e iminência de futuro.

Justamente, quando já fomos “revirados” de algumas maneiras, caímos no vácuo, em um buraco, físico, vazado através de muitas páginas, postas ali milimetricamente com começo e fim. A ideia do peso falso do livro e o abismo das páginas cortadas vieram da produtora editorial Viviane Gandra. Criou-se então um espaço projetado que nos surpreende em contraponto ao turbilhão de imagens escritas ou vistas anteriormente.

Descanso para a percepção de alguns. Para outros, infinitude de pensamentos imagéticos. Do mesmo modo que João Castilho transforma paisagens, seu livro também indica outros mundos. Para mim, um livro objeto. De certa maneira, se equivale ao senso escultórico das pedras de Castilho, achadas em 2009, em pequenas cidades da Bolívia.

A potência sensorial desse livro objeto provém da dimensão de “pequena jóia” que João Castilho imaginou para o livro. Pretensão? Em absoluto. Talvez sim, um modo de nos ofertar sua obra como um presente, repleto de boa literatura e em dado formato que nos faz querer guardar e ser assumidamente enganado, a cada retorno. Concebido como objeto, como coisa que guarda fotografia, literatura e ilusão, torna-se fácil amontoar Peso Morto na memória – assim, como os montes de pedras na paisagem fotográfica de João Castilho.

> João Castilho no Olhavê

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