Fernando Schmitt

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No Paraty em Foco deste ano, o fotógrafo Fernando Schmitt transformou o Mercadinho do Cais num espaço improvável: um apartamento desabitado de São Paulo. A exposição foi uma das selecionadas da convocatória do festival e é resultado do ensaio Coisas Vazias, o mais recente trabalho de Fernando.

Fotos: Fernando Schmitt

Montagem no Mercadinho do Cais em Party

OLHAVÊ – Fernando, nos conte como surgiu e se desenrolou o ensaio Coisas Vazias?

FERNANDO SCHMITT – Faz algum tempo minha mulher e eu estamos procurando um apartamento em São Paulo. No início de novembro do ano passado uma corretora nos levou a um apartamento advertindo que estivéssemos preparados pois o dono, um norte-americano, havia morrido há quatro anos e suas coisas ainda estavam lá, do jeito que ele havia deixado.

Isso pode soar meio mórbido, meio macabro, parece que de modo geral as pessoas reagiam negativamente, mas fiquei fascinado, havia ali um monumento à impermanência humana, um retrato de uma pessoa que não conheci, um sitio arqueológico cheio de pistas.

Entrei em contato com o procurador do herdeiro no Brasil e fui autorizado a fotografar o imóvel. Minha primeira empreitada foi documentar tudo como havia encontrado. Fixei o tripé na altura dos olhos com a câmera na horizontal, queria manter esse ponto de vista meio cru de alguém que entra e olha tudo, restaurar a primeira sensação de entrar naquele lugar tão específico.

Não sou um sujeito muito metódico, acredito muito em algumas intuições momentâneas. Fotografo primeiro, depois vou pensar porque fiz, que tipos de questões estão envolvidas, o que fazer com essas fotografias.

Aos poucos, andando pelo apartamento, fui percebendo que ele estava realmente vazio. De afeto, de memória, de uso, de sentido. Eu podia registrar o que via, mas eu não via além da capa superficial de aparência das coisas. Aquilo que eu achava que conhecia do antigo morador baseava-se apenas em suposições e deduções de uma espécie de jogo onde eu fazia o papel de detetive barato.

Fiquei sabendo pelo advogado que tinha me autorizado a fotografar que ele teria que esvaziar o apartamento para facilitar a venda. Mostrei as imagens que já tinha produzido e pedi permissão para mexer nos objetos e compor cenas com eles, para emprestar um sentido meu àquilo que havia sido mutilado pela morte de seu dono. Foram as ultimas fotos que fiz lá.

Passei um bom tempo editando, mostrando para amigos e testando os resultados em algumas leituras de portfolio. Até sair a convocatória do Paraty em Foco que me deu o mote e um espaço específico para pensar como expor o trabalho.

OLHAVÊ – Em Paraty, o projeto ganhou forma na exposição realizada no Mercadinho do Cais. Me parece que foi uma montagem acertada e que o ensaio ganhou outra dimensão ao ser exposto. Coisas vazias já está terminado?

FERNANDO SCHMITT – De um lado sim, algumas das questões que as imagens podem suscitar, provavelmente as mais fortes, foram abordadas na montagem da instalação em Paraty. O que não quer dizer que elas não possam ser retomadas em outro momento e outras circunstâncias. Também não tenho mais acesso ao apartamento, não há mais o que fotografar.

De outro lado fiquei meio fascinado por esse tipo de ambiente. Quem sabe o que vou encontrar nas minhas andanças? E, revisitando de tempos em tempos as imagens que já tenho, acho que há outros caminhos que podem ser explorados. Por um viés mais arqueológico, talvez. Ou através de uma remontagem dos detalhes na construção de uma espécie de retrato. E sempre pode haver algum caminho que ainda desconheço. Vamos ver.

OLHAVÊ – A concepção de montagem seguirá a mesma?

FERNANDO SCHMITT – Acho pouco provável. O Mercadinho do Cais e o “Futuro”, tema do Paraty em Foco deste ano, pediam um recorte bem específico do trabalho. A discussão ali girava em torno de uma modalidade de futuro que nos amedronta, das marcas produzidas pela passagem do tempo, dos vestígios e do legado que deixamos, do esvaziamento de afeto e memória daquilo que nos pertence e, no fundo de tudo, da nossa mortalidade.

Daí, por exemplo, a escolha das imagens com os relógios, instrumentos de tentar medir e ordenar o tempo – havia um em cada cômodo do apartamento, cada qual carregando em si a marca visual do momento em que parou. E o Mercadinho é um espaço muito específico que permitiu usar as fotografias como paredes, constituindo um espaço ambíguo entre dentro e fora, privado e público.

Em outra circunstância talvez dê para compor um retrato mais completo, ou como falei acima, discutir outras questões. Há muitas imagens que não usei.

OLHAVÊ – Noto que após a sua mudança para São Paulo, você “adquiriu” uma pegada fotográfica de forma diferente. Os ensaios SP e Coisas vazias são bem distintos das suas pesquisas como em Dinheiro, A mulher que eu vejo toda noite, Samba de uma rosa só e outros. Você se soltou mais indo para a rua, para outros ambientes. Nos conte esse processo.

FERNANDO SCHMITT – De certo modo mudei muito com a vinda para São Paulo. Me senti obrigado a movimentos que antes eu não precisava. Em Porto Alegre eu trabalhava tempo integral na universidade, percorria trajetos rotineiros, conhecidos e cômodos. Estava meio preso a um universo restrito, um tanto ensimesmado. Mais preocupado com as questões que trabalhava em sala de aula como a linguagem fotográfica, seus limites, transformações e expansões. E quase não me expunha, dava pouco a cara a tapa.

Depois de me mudar, tive que circular pela cidade que conhecia pouco em busca de trabalho, de moradia e, em alguma medida, de me tornar visível. Acabou que vi muitas coisas, que construí uma São Paulo minha que buscou visualidade. Mudou também minha relação com o tempo. Ainda sem um trabalho fixo que me ocupasse integralmente, tive uma disponibilidade de olhar, de ver e de enxergar mais.

De outro lado acho que permaneço o mesmo, experimentando modos diferentes de me apropriar da linguagem e do ato fotográfico. Continuo interessado em fotografar coisas e lugares. Não sou um retratista, me aproximo das pessoas através dos vestígios, das construções simbólicas, das pistas que elas deixam. E apesar de não fotografar gente, gosto de pensar meu trabalho como humanista.

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