O fotógrafo de Paris

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marville_02Sky Study, Paris, 1856–1857

Por Moracy Oliveira.

Charles François Bossu (1813-1879) reinventou-se duas vezes em sua vida. Na primeira reinvenção adotou o nome artístico de Charles Marville. Na segunda, onze anos após o anúncio oficial da invenção da fotografia, tornou-se fotógrafo, o fotógrafo de Paris como chegou a ficar conhecido em sua época e mais recentemente, após o início de sua lenta e oportuna redescoberta.

Parte desta redescoberta se consolida agora com sua primeira grande exposição individual nos Estados Unidos, na National Gallery of Art, de Washington, no último trimestre de 2013 e que, posteriormente, estará no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, entre 27 de janeiro e 04 de maio de 2014. São 98 imagens, quase todas obtidas pelo processo de calotipia, de definição impressionante, mostrando principalmente uma Paris pré-Haussmann, ainda desenhada por vielas medievais, bosques, favelas e que eram conhecidas apenas por historiadores da cidade, mas pouco, ou quase nada, pela história da fotografia, onde muitas de suas fotos chegaram a ser confundidas com as de Atget, de quem foi predecessor. Junto com a exposição foi lançado pela National o livro/catálogo Charles Marville: Photographer of Paris, onde cinco pesquisadores se revezam na mais ampla pesquisa feita sobre o autor e seu trabalho, desentranhando do passado as informações que ajudam a compreender a extensa atividade do fotógrafo.

Diante das imagens expostas, o crítico Richard Woodward, do Wall Street Journal assinalou que Marville olha Paris como um sociólogo, mas com dedicação artística e um ar nostálgico, tentando captar a cidade simbólica, aquela que convive com a cidade real mas não se confunde com ela, a cidade que habita corações e mentes mas não tem calçadas físicas a serem percorridas por seus habitantes. Já Louis Jacobson, do Washington City Paper preferiu ver no fotógrafo apenas um burocrata, repetindo, em parte, a mesma tese da qual Marville havia sido vítima em 1878 quando chegou a ser considerado uma espécie de testa de ferro de Haussmann, fotografando os lugares que deveriam ser destruídos. E, finalmente, Michael O´Sullivan, do Washington Post, avaliando as imagens pré e pós-Haussmann registrou que Marville mostra, na verdade, os primeiros indícios do apetite moderno para a destruição.

O fato é que Marville produziu uma extensa obra sobre Paris entre 1851 e 1879, ano de sua morte. Ao lado das ruas estreitas e de esgoto a céu aberto, de casas amontoadas, estão imagens dos arredores parisienses, de seus parques não urbanizados, dos equipamentos urbanos modernos, dos monumentos e prédios históricos e de uma infinidade de paisagens urbanas de Paris. E tudo foi feito porque ele foi uma espécie de fotógrafo oficial da cidade, trabalhando para comissões do patrimônio histórico, para a prefeitura, para o Louvre. Curiosamente, mais ainda por serem trabalhos oficiais, suas imagens ainda existem pelo seu hábito de não entregar os “negativos” para quem o contratava. Em 1871, com a Comuna de Paris derrotada, houve uma série de destruições de prédios históricos da cidade, entre eles o da Prefeitura, onde as fotografias estavam arquivadas. Além de fotografar o prédio destruído, Marville ofereceu novamente as fotos a instituição.

marville_09Haut de la rue Champlain, Paris, 1877-1878

A Reinvenção

Filho de pequenos fabricantes de produtos de couro e de baixa estatura, amargou todas as piadas e insolências juvenis durante a infância e juventude devido ao seu sobrenome Bossu – corcunda, em francês – coisa que aturou até os 19 anos, em 1831, data de lançamento e sucesso de Le Bossu de Notre Dame – O Corcunda de Notre Dame – de Victor Hugo. Para fugir das provocações e associações inimagináveis resolveu adotar o nome de Charles Marville, nome que oficialmente nunca foi registrado, causando enormes dificuldades a pesquisadores que durante anos não conseguiam identificar seu nome real e não conseguiam reconstituir sua história.

O motivo dessa adoção ele contou a sua mulher no final da vida, mas o sobrenome Marville é ainda fruto de especulação. A que tem a maior simpatia aponta uma composição entre ma ville (minha cidade) e merveille (maravilha), o que carrega uma certa lógica diante do fato de que sua vida foi dedicada a retratar Paris, primeiro como ilustrador e depois como fotógrafo.

A segunda reinvenção se dá em 1850 quando abandona a ilustração que fazia para publicações populares, álbuns, livros, e se dedica a fotografia. Embora tenha obtido algum reconhecimento como ilustrador de cenas parisienses, nunca conseguiu fazer parte do primeiro time dos ilustradores e artistas e isso, especula-se, o teria levado a fotografia. Sua formação nessa área é desconhecida, mas suas primeiras imagens se voltam para os mesmos motivos de suas ilustrações: vistas urbanas, monumentos, paisagens, os quais fotografa com composições limpas, equilibradas.

Um ano depois, em 1851, Marville torna a fotografia a sua profissão e pede a Prefeitura autorização para “fotografar edifícios, fora e dentro de prédios e monumentos históricos”, alegando que por utilizar processos “a seco” não os colocaria em risco. Logo suas fotos se tornam conhecidas e ele passa a ser chamado por arquitetos para fotografar principalmente prédios que seriam reformados ou outros, que fossem de interesse desses profissionais. Em 1858 já é o fotógrafo da comissão de arquitetos responsáveis pela restauração do patrimônio francês.

Em 1859 faz, não um pedido, mas uma proposta ao Louvre. Ele se propõe a fotografar cada obra que estivesse sob consideração para aquisição pelo museu. Seu argumento é que o principal era fotografar as obras que não se adquire, seja para a história da arte, seja para documentar seu estado de conservação. Ele entendia que duas fotos deveriam ser feitas: uma para um álbum que teria grande interesse para o museu e outra para acompanhar a avaliação. O negativo seria destruído para proteger o artista. A partir de 1861 ficou no Louvre, reproduzindo obras, até quase o final da vida, superando reformas administrativas, disputas internas e persistentes riscos de ser despejado do espaço que ocupava, o que lhe valeu a acusação de bajulador, além de arrogante.

Em 1860 é comissionado para documentar projetos de construções municipais e, em 1862, se torna, finalmente, o fotógrafo oficial de Paris e acompanha todo o processo de intervenção urbana promovida por Haussmann, registrando não só o processo de destruição como o da reconstrução da cidade. E em 1865 publica o álbum Vieux Paris, com 425 fotos feitas até então.

Fotógrafo de profissão, fora a foto de uma irmã e a mãe, um retrato mortuário de Ingres, uns pouco retratos, e um inóspito, considerando-se a sensibilidade dos materiais e velocidade dos equipamentos da época, ensaio sobre nuvens, feito do teto de seu estúdio, nada mais se conhece fora de sua atividade profissional. Uma de suas poucas participações em exposições se deu em 1878, na Terceira Exposição Universal, realizada em Paris, onde mostrou fotos da cidade feitas antes e depois da renovação de Haussmann, o que lhe custou caro, principalmente junto a intelectualidade mais romântica –e míope – que sem atentar para datas, objetivos e funções das imagens produzidas antes de operação Haussmann, o viu como parte do discurso oficial de modernização e como seu homem de frente ao mostrar uma cidade insalubre, suja, escura, justificando sua destruição.

Um ano depois, em 1879, Charles Marville morreu na obscuridade.

marville_05Place Saint-André-des-Arts (sixth arrondissement), 1865–1868

marville_07Construction of the avenue de l’Opéra: Butte des Moulins, December 1876

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