Ara solis (aqui estoy frente a mi)

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barco_1Fotos: Luis Gonzáles Palma

Ara solis (aqui estoy frente a mi) 

Como apaziguar ondas? Quero dizer, como tomar pela mão algo improvável de narrar. Mesmo tendo a indefectível e tediosa certeza de que depois de uma onda outra estará por vir. Nos alenta saber que com a próxima não seremos surpreendidos, não seremos mais doces incautos em prever a força delas contra nosso corpo.

Por pura autopreservação, não somos capazes de mensurar o quanto de fúria as águas trazem. Para aqueles que preferem não se sujeitar à esta natureza, resta a espuma, o vestígio da onda. Assim, como num canto da sereia, por essa errância de ondas, caí de encanto por Ara Solis (aquí estoy frente a Mi).

Galícia, Espanha.

O homem chega de viagem a um lugar de nome não tão confortável: Costa da Morte. Amistoso e belo, o lugar destrata o incômodo do nome.

Foi a trabalho. Num primeiro momento, pensava na ideia de um trabalho sonoro.

A ideia era terna e antropológica, ligaria-se à oralidade. Àquelas histórias que vem da tradição, ganham temperos geracionais, dramaticidades temporais, crescem a medida que abrem-se frestas para a ficção beijar ainda mais os mitos e símbolos de uma cultura. Enfim, voltando para a ideia, esta seria de resgatar a história da região através de canções de ninar tradicionais, todas relacionadas com naufrágios e aventuras marinhas. Desafortunadamente, o projeto não vingou. Os anciãos já haviam perdido o fio da memória. Não mais conseguiam contar.

Por alguns momentos, o vento poderia ser o culpado. Sempre que questionava sobre tais histórias, ele soprava agudamente. Parecia conspirar para que escapasse daquele homem estrangeiro, embora muito delicado e educado, a intimidade das tradições.

Na ausência da fala de quem poderia contar o novelo do imaginário e dos mitos, dirigiu-se à história e seus dados. Empenhado na construção de hipóteses do que viria  a ser seu trabalho, caminhou literalmente em suas pesquisas para o fim da terra.  Na verdade, já se encontrava bem perto do despenhadeiro, do limite rochoso, do símbolo que entoa a palavra Finisterre.  Ali mesmo na Galícia, também ali na Costa da Morte, há este lugar que termina com a perspectiva da paisagem. E assim ele descreveu:

– Finisterre era considerado desde a época dos fenícios como um lugar sagrado ao qual se faziam longas peregrinações para ver onde se ocultava o  sol. Na época dos romanos se construiu Ara Solis, um templo dedicado ao sol e ao que lhe atribuíam poderes de fertilidade. Ao final da viagem, ao ver os entardeceres no mar, cada peregrino dizia, “Ara Solis, aquí estoy frente a Mi”. É claro que a viagem era uma experiência espiritual, a busca interna de si próprio.

Passei então a fazer parte desta imagem histórica, diria até mesmo que consegui avistar o mar, transportar-me para a abundância das águas deste “fim de mundo”.

Durante a conversa, não pude ver seu gesto, pois trocávamos palavras escritas, contudo pude vislumbrar sua intensidade ao dizer-me que lhe interessou a ideia simbólica da viagem como impulso para imaginar. Se da imaginação compomos imagens, ele aprofundou ainda mais as suas ao optar pelo mundo das fadas. Empenhou-se na leitura “Psicoanálisis de los cuentos de hadas” (de Bruno Bettelheim), afinal almejava compreender a busca de sentido das crianças sobre o imaginário do lugar no qual nascem e crescem. Em nossos diálogos sobre construção crítica da imagem fotográfica sempre surge esta inquietação: “traduzir experiências emocionais em imagens”.

As hipóteses do olhar deste homem que pensa por imagens, e vice-versa, fazem parte do fluxo e do processo de submergir em sonhos, em concepções visuais mentais tão profundas quanto oníricas. Talvez, sejam também: símbolos que abraçam questões tão etéreas quanto íntimas. Confesso que precisei conversar mais, escrever-lhe mais, entender os nexos de suas escolhas, dos objetos que tornam-se elementos poéticos com tamanha desenvoltura. Como se não houvesse distinção entre materialidade e signo, entre a certeza da realidade e a correnteza da metáfora deste real.

Volto ao homem. Luis, chama-se ele, me diz que tais imagens “tem a ver com a infância, a solidão e a imensa necessidade de imaginar da criança como forma de compreender seu mundo, seus medos e anseios”. Alongamo-nos sobre esta questão, e lhe perguntei:

– Como atravessar o fato da existência dos objetos prosaicos da vida e torná-los elementos poéticos que mergulham numa dimensão simbólica?

– Na dimensão simbólica dos sonhos podes viajar e navegar nesses mares que te nutrirão de tantas histórias e aventuras. As imagens transmitem-se em silêncio, e conseguem ter sentido porque nós a completamos. Sem lugar a dúvidas tudo ocorre em seu cérebro, aí reside sua capacidade lírica de transformar e simbolizar o mundo. Penso que nestes processos complexos de transformação do visual ao simbólico, sempre traduzimos imagens que nos afetam, e nesse processo sempre fica um vazio, uma espécie de perda que preenches com lembranças de sua própria vida. Ao final, você é o barco, a janela e a luz que ilumina a cena.

Luis González Palma (1957), guatemalteco,  herdou símbolos católicos e políticos de seu universo cultural. Resolveu refletir e debater os significados destes contextos pela arte. A experiência de vida fustigou-lhe a criar imagens. Entrou na fotografia questionando o invisível da identidade. Nada que julga-se a individualidade, a aparência, mas sim a construção de um debate sobre as inquietudes de uma  sociedade. Rompendo com o documento, revelou imagens esmeradas. Prolongadas pela artesania de ranhuras, ou da aplicação de algo quase bíblico, o betume de judeia, e de outros tratamentos manuais, carinhosos, sua fotografia converte-se em camadas tácteis.

Luis mudou de território. Hoje, vive e trabalha em Córdoba (Argentina). A Guatemala segue em Luis. Com sua família, mora numa casa cercada pelo campo, seguindo sua intensa trajetória na fotografia latinoamericana concentrado em seu ateliê cercado por um entorno silencioso que supomos longinguamente o que deva ser.

Começo então a lembrar-me da primeira vez que vi aqueles oceanos construídos com ondas mansas. Através da sua narrativa fotográfica, a potência invisível do mar e dos barcos ficcionaliza atmosferas oníricas, silenciosas, plácidas. Cenas e cenários representados com perturbadora simplicidade. Com muito pouco, se chega a tempos outros, a certa luz pictórica holandesa, ou mesmo, a soluções singelas como pedir emprestado tais barquinhos. Após visitar o Museu Naval na Costa da Morte, Luis teve um alumbramento. Ali, surgiu a certeza de que esses barcos estavam lhe esperando.

Por fim, refletiu, que essas imagens poderiam ser lembranças possíveis de um adulto ou um velho homem sonhando ao lado do mar. Sim, poderia. Eu mesma passei a enxergar essa miragem, toda vez que regresso ao ensaio Ara Solis (aquí estoy frente a Mi).

A viagem deste homem que imagina por entre barcos e quartos não teve fim. Fez dos quartos de um pequeno hotel e de uma casa em particular a extensão alegórica do recolhimento íntimo desses ambientes. Voltou da Galícia, mas trouxe consigo a metáfora de um oceano profundo, emprenhado do feitiço sutil de suas ondas. Construiu imagens tão poéticas que nos acalantam, para também sonharmos ao lado do mar, navegando por nossos próprios alumbramentos.

Georgia Quintas.

* Texto sobre o ensaio Ara solis (aqui estoy frente a mi) do artista guatemalteco Luis Gonzáles Palma, publicado na revista s/nº sobre o tema Onda.

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