A seção Processo de criação volta com a fotógrafa Ana Carolina Fernandes, que abre a sua exposição “Mem de Sá, 100” na DOC Galeria, São Paulo, no próximo dia 1 de outubro. A curadoria é de Eder Chiodetto.
Ana é fotógrafa, fotojornalista, repórter-fotográfica, contadora de histórias, jornalista, cronista, flâneur, turista, …
Ana é um exemplo de profissional que deveria ser mais espelhada. Se dedica à fotografia com paixão e empenho. Sabe do seu ofício.
Com uma trajetória já bem desenhada no fotojornalismo brasileiro, Ana tem feito coisas bem legais das manifestações no Rio de Janeiro, imagens super interessantes no Instagram, etc. Não anda parada. É só conferir as galerias no Facebook dela. Em junho, publiquei uma série dela sobre o Rio de Janeiro no Sobre Imagens.
O fotojornalismo como gênero (não curto nada usar esta palavra), como linguagem, está mais vivo do que nunca. Nada melhor do que esta conversa com Ana para revigorar tudo isso. As fotos deste post não estão na exposição. Por isso, não deixem de ir lá.
Ana, nos conte sobre o projeto?
Esse projeto nasceu de uma conjunção de interesse, oportunidade e momento certo. A vontade de fazer esse ensaio surgiu há 11 anos atrás quando eu conheci a Luana Muniz ( através de um amigo em comum ), travesti com grande influência na comunidade da Lapa. Sempre tive grande simpatia pelos travestis. A ambiguidade de dois corpos, o feminino e o masculino na mesma pessoa, sempre me fascinou. Fora que, guardadas e apesar, das diferenças sociais, sempre me considerei uma outsider, portanto, o mundo dos excluídos, dos que vivem à margem da sociedade, nunca me assustou, muito pelo contrário, me atrai. Quando a conheci, a Luana me convidou para ir a um show de transformistas em um clube frequentado por elas. Fui, adorei mas, nessa época eu trabalhava enlouquecidamente na Folha de S. Paulo, sem horário fixo, e não me sentia capaz de desenvolver um trabalho autoral, documental , com o envolvimento que gostaria de ter. Fiquei amiga da Luana, nos encontrávamos as vezes, ela sempre me dizia que a hora que eu quisesse as portas da casarão onde ela alugava quartos para cerca de 25 travestis estariam abertas para mim. Deixei adormecido mas não esquecido, e a semente do projeto já estava emocionalmente plantada e isso era importante. E eu e a Luana já tínhamos uma cumplicidade. Em 2008 saí da Folha, foi uma decisão amadurecida, o fotojornalismo diário já não me satisfazia mais, muito pelo contrário, me frustrava quase que diariamente. Queria poder contar histórias mais longas. No final de 2010 reencontrei a Luana por acaso, no centro do Rio, depois de alguns anos sem nos vermos. Fomos tomar um café e surgiu o assunto fotografar os travestis da Lapa. Era a hora e o momento certos.
Fui ao casarão alguns dias depois pra ela me apresentar às meninas ( sempre chamei elas assim ) e sentirmos a reação. Levei a câmera, claro, mas na bolsa. Era um domingo, sem muito movimento nas ruas da Lapa e sem muito clientes. Fui muito bem recebida, tomamos vários cafés, sentei no chão…estava à vontade ( depois, durante o tempo em que fotografei, me sentia em casa ) …e oficialmente com passe livre: poderia voltar sempre e quando eu quisesse. Era a gloria para uma fotodocumentarista (o que eu ainda nem me considerava ser . falamos disso mais pra frente ). E isso era uma grande motivação também. Era oportunidade muito rara e fascinante para um fotógrafo: estar dentro de uma comunidade fechada, autorizada, liberada e sem censura. A Luana, nunca tinha permitido esse tipo de acesso a ninguém. E me disse que fez isso “por total e absoluta confiança em você “. Me senti honrada com essa confiança e sempre me comportei nesses mais de 2 anos honrando a confiança depositada em mim. Meu objetivo? Sempre quis fotografar a beleza e a sensualidade dos corpos das travestis. E o cotidiano delas na vida domestica. A rua , a prostituição Cliente/ janela de carro, foto “roubada” pouco ou nada me interessava. Muito mais do que dar voz a um grupo excluído da sociedade, eu queria dar um corpo, sensibilizar , abrir a mente de pessoas que estão acostumadas a pensar o mundo e a sexualidade com padrões de conceito preestabelecidos e prejulgados.
Como foi a dinâmica da produção das imagens?
A dinâmica era de acordo com o meu astral e disciplina. Ou seja: sem disciplina rígida. Pela primeira vez eu fazia um trabalho como tantas vezes eu tinha sonhado: autoral, documental, um tema muito interessante, na minha cidade, perto da minha casa (o que fazia os custos serem bastante baixos) e me sentindo totalmente livre.
Eu ia quando queria, 3, 4 vezes por semana. As vezes passava um mês sem aparecer. O legal é que eu e algumas meninas sentíamos saudades. A tarde pegando o começo da noite, quando elas começavam a se arrumar para sair, era a minha hora preferida. Mas fui muitas noites e madrugadas. Gostava de ir nos shows da Luana (tenho um grande material inédito do camarim), geralmente uma sexta-feira por mês.
Esse ensaio começou quase que ao mesmo tempo que o meu projeto “Prainha“ (que não começou como um projeto, mas isso é outra história… rs…). Tudo nos dois ensaios eram opostos, e as vezes eu estava numa fase mais solar, ficava um tempo sem ir ao casarão. A Lapa, principalmente a partir de quinta-feira, me cansa, muita gente e principalmente muito barulho. Fotografei quase 3 anos ao todo.
É um projeto finalizado com as exposições? Haverá desdobramentos?
Não é um projeto finalizado, de jeito nenhum. Dentro desse mesmo universo tem muita coisa que eu não consegui fotografar ainda. Gostaria de fazer um livro, sim, mas é um tema delicado e ainda não conheci nenhum dono de editora que queira publica-lo. Gostaria de mostrar fora do Brasil em uma exposição. A publicação na Burn pelo David Alan Harvey teve uma grande e muito positiva repercussão.
Como jornalista, repórter, você foi buscar respostas? Ou houve muita entrega e troca de experiências?
Não fui buscar nenhuma resposta mas sim, histórias de vidas. Um projeto que eu tenho é de gravar depoimentos em vídeo (só tenho um gravado e foi por insistência da Valeria, que queria falar). Houve entrega total, nenhum prejulgamento, a mente totalmente aberta e aberta a ser surpreendida, como fui, muitas vezes como quando conheci duas meninas (menininhas mesmo, 19 anos, 20 no máximo) a Aline e a Natasha. Elas tinham um relacionamento amoroso há 2 anos e queriam formar uma família. Ou seja, eram dois homens, que eram duas mulheres, que se relacionavam e não se consideravam homossexuais e ainda queriam adotar uma criança. Ali eu me surpreendi e mas imediatamente me perguntei: por que não?
Este projeto tem uma carga documental e de pesquisa bem forte. Nos fale um pouco sobre essa sua pegada de “cronista” do Rio de Janeiro.
Acredito que esse projeto me escolheu, sinceramente. E não tive quase pesquisa, só fascínio e simpatia. A pesquisa foi in loco e fotografando, observando, ouvindo. Era curioso, eu estava tão a vontade e elas confiavam tanto em mim, a cumplicidade jamais foi arranhada, que as vezes elas até esqueciam que eu estava por lá.
O fato de ser mulher facilitou muitíssimo essa convivência. Essa coisa de eu ser “cronista” do Rio de Janeiro começou com meu grande amigo Alexandre Sant’Anna que disse isso em uma entrevista no Segundo Caderno do ‘Globo‘ em que ele indicava um artista de quem gostava. Depois você falou isso e aí “pegou”. Fico muito lisonjeada mas sem egotrip.
O verdadeiro cronista não tem pretensões. E o Rio tem uma tradição de cronistas da cidade, do porte de Carlos Drummond de Andrade, João do Rio, Machado de Assis. O iPhone e também a minha “auto alforria“ da vida de fotojornalista empregada, facilitou muito a minha vida de flâneur, ou cronista, ou vagabunda perambulando pela cidade… rsrsrs
Como você enxerga a fotografia documental inserida no contexto da fotografia nacional hoje?
Eu estou engatinhando no mundo da fotografia documental então não tenho bagagem e nem autoridade ainda pra falar muito. Mas uma coisa que eu acho que falta é um prêmio de fotografia documental, documental, não documental jornalístico, não documental imaginário. Clássico, ortodoxo. Hoje em dia me parece que se o fotógrafo não tiver um trabalho conceitual não é muito valorizado.
Um dos projetos mais fortes, poeticos e promissores que tenho visto …Sera um prazer acompanhar seu desdobramento.
Belíssimo trabalho. Instigante, interessante e novo!… Historia muito bem contada com luz!…
Lindo! Muito forte, cheio de significado! Elas são lindas! Ah, gente dos comentários… olha só, não se fala OS travestis, e sim AS travestis, no feminino. É desrespeito tratar no masculino e tal. Só pra avisar.
pParabéns Ana va em frente pois o talento você tem .
Carolina gostei tanto de te ler e te ver pelas fortes/lindas fotos que imaginei um doc dessa tua historia,ou melhor de outra que te venha a cabeca,porque alem de super fotografa,voce eh uma personagem,quase incrivel
Estava eu, ainda às voltas com as imagens dos travestis da Ana na cabeça, quando cruzei de repente
com uma linda foto dela, das crinas de um cavalo no
primeiro plano. Totalmente diferente….totalmente linda!!! essa Ana não para de encantar nossos olhos!!
só me cabe agradecer!!!
Seria uma releitura de Miguel Rio Branco nas imagens feitas no antigo Pelourinho?
A rigor, o objetivo da fotografia para mim é trazer informação com envolvimento, elementos alusivos e com forte simbolismo, tornando a transmissão da mensagem eficiente e de forma inteligente.
E neste trabalho, acrescenta-se ainda técnica apuradíssima.
Deve ter sido uma experiência enriquecedora em termos de conhecimento e incremento de repertório.
Parabéns!
Resumo de tudo: Sem comentários de tão forte e, fascinante.