Foto: Leo Caldas – Capela Dourada, Recife/PE
“(…) O recifense não está ligado às suas Igrejas só por devoção aos santos, mas de um modo lírico, sentimental: porque se acostumou à voz dos sinos chamando para a missa, anunciando incêndio; porque em momento de dor ou de aperreio ele ou pessoa sua se pegou com Nossa Senhora, fez promessa, alcançou a graça; porque nas Igrejas se casou, se batizaram seus filhos e estão enterrados avós queridos”.
Esta breve crônica social escrita pelo sociólogo Gilberto Freyre, apesar de enfocar o viés sentimental das igrejas com a sociedade, nos proporciona de maneira subjacente e remonta dicas de como é intrínseca a presença da arquitetura barroca pernambucana na vida comum dos seus habitantes na época colonial. Ou seja, o barroco em Pernambuco não pode ser apenas sintetizado pelas pedras de cantaria e entalhes monumentais. Historicamente, foi um processo de dominação, da busca pela onipotência da coroa portuguesa e delimitação de espaços terrestres e imaginários. No entanto, quem as ergueu, quem as frequentavam, os religiosos que as dirigiam, os senhores e até mesmo o povo paupérrimo, que bancavam as despesas com reformas e construções, compõem um panorama antropológico da arquitetura barroca.
A arte barroca (séc. XVII e XVIII) que se desvela dentro de uma historicidade, estabelecida como ideologia religiosa (em defesa da Contra-Reforma), política (poder Absolutista), colonialista – empregada como missão de persuasão e aculturação (domínio de ânimos dos colonizados) – e criada pela Igreja Católica, respaldada pelo Concílio de Trento (1563) que ditou as regras dessa arte, transforma a estética em objeto de propaganda de um status quo e em manutenção da ordem social-política-religiosa. Em solo pernambucano, os portugueses trouxeram a ideologia, o esboço da sua arte barroca. Não foram inócuos, mas a própria região deu conta de trabalhar o estilo Barroco com características peculiares.
Olinda, a primeira capital, com seus belos monumentos, erguidos entre manguezais pelos portugueses como o Mosteiro de São Bento, o Convento dos Franciscanos, são respeitados pela cidade nova. Desse modo, tornou-se um simples arrabalde.
Devido a ocupações e invasões, o traçado arquitetônico tanto em Recife como em Olinda acompanhava esses dois fatores. Ora conservados, ora destruídos. A hibridez entre a vitória dos vencedores e o fracasso dos vencidos resultou em novas igrejas e no desgaste de vários monumentos causado pelos conflitos. Em 1654, os holandeses foram expulsos. Como consequência das batalhas deixaram Recife arrasada. Dos escombros, a cidade se ergueu atrelada ao Barroco. Igrejas setecentistas surgiram à beira das águas dos canais e dos rios.
Devemos ponderar, antes de mais nada, uma premissa básica: o barroco brasileiro de Setecentos foi um braço do de Portugal; distintos, contudo complementares. As características formais do barroco português são a curvilinealidade, com referências à pompa do maneirismo jesuítico de Quinhentos e Seiscentos.
O barroco brasileiro adquiriu feição extremamente original em igrejas como as de Minas Gerais, Salvador, Recife, Olinda e Rio de Janeiro. O novo está no tratamento elegante à pedra, como também na criatividade e opulência de sua talha, de delicado recorte coberta de ouro. Assim como, o foco da dramaticidade na escultura sacra (em madeira ou em pedra-sabão) subverte o divino para se tornar mais humano. Em Aleijadinho vemos a quintessência, o baluarte, desta dramaticidade artística. Nosso imaginário apresentou-se mais carregado de emoções e sentimentos humanos.
*Publicado no Jornal do Commercio em 20 de maio de 2003.