Guernica (1937) de Pablo Picasso
Por que Guernica é considerada como uma das mais importantes obras de arte do nosso século? Elaborar argumentos sobre esta obra é uma tarefa que nos leva a vários raciocínios. Podemos explanar através de três vertentes: a artística, a histórica e a social. Contudo, será penoso não uni-las, já que fazem parte de um único objeto de discussão. O grande mural de Picasso, que atualmente faz parte do acervo do Centro de Arte Reina Sofía em Madri, foi inspirado em um ataque aéreo contra civis.
O próprio nome que intitula a obra remete à pequena cidade espanhola Gernika-Lumo, capital tradicional da região basca, que sofreu um estúpido bombardeio num dia de mercado em 1937. Durou três horas e meia. Intenção do ataque: experimentar os efeitos combinados das bombas explosivas e das bombas incendiárias sobre a população civil. Dentro dessa atmosfera, nada mais natural do que a revolta impulsionar a criação do artista.
Artisticamente, Guernica é um trabalho fabuloso do artista plástico espanhol Pablo Picasso (1881-1973). A maneira como transpôs um acontecimento individual num fato universal é indubitavelmente o primor da síntese, emaranhado com a sua emoção pessoal deliberadamente exposta. Há um grau de indignação que, entretanto, não significa a dormência característica de um mero observador. Pelo contrário, o estabelecido é o horror – que é muito mais vigoroso.
Só que Picasso não exprime a crueldade por meio da simples representação do horrível; nos transmite este sentimento com mais força, porque recorre a um ritmo sacudido, a um traço incisivo, a anomalias de formas, a valores trabalhados com dureza. O horrível vai além das aparências, sai de dentro do lamento das figuras. Modela a expressão, como se Picasso vivenciasse a crueldade humana sofrida por cada uma delas, em suas diversas reações/sentimentos.
Ainda no âmbito das artes plásticas, existe um fator primordial que eleva esta obra ao patamar de importância no qual está: sua atemporalidade. Ela tem o frescor do recém pintado. Apesar dos sessenta e seis anos que possui, a essência de Guernica não sofreu desgastes. A capacidade de emocionarmos, identificarmos expressões e contextualizá-las, torna-se uma atitude contemporânea. E parte dessa possibilidade é viável graças à sinceridade do autor em retratar nuances da alma humana e seus suplícios.
Ao levarmos em conta a ocasião em que foi pintada 1937 (a Guerra Civil Espanhola tinha estourado em julho de 1936) e a fonte de inspiração de Guernica, a consideração de que seja um legado histórico é plausível.
Registro de uma época. Isso seria outra forma de desvelar sua carga documental. Em algumas biografias sobre Picasso, citam que o artista nunca se preocupou em pintar para os museus nem para a história. Contrariando o próprio idealizador de Guernica, a existência da obra propicia discussões (reflexões) não apenas sobre o passado, mas também sobre o presente e o futuro. E é isso que Guernica desempenha: desmembrar o que vivemos para tentarmos entender o que somos. Nada mais do que lembrar a História e percebermos a persistência daquela intolerância e sordidez dos homens num tempo real.
Por uma perspectiva empírica, pela qual Guernica se ergueu, mesmo Picasso não sendo vítima do bombardeio, mas pela forma de solidariedade possível à sua natureza (sua arte) de comungar com seus compatriotas, vislumbramos sua origem de autêntico documento. Foi a experiência em uma época, numa certa ocasião que floresceu em Guernica o espírito macro da criação do artista. A verdade de um trabalho artístico está dentro do criador. Picasso poderia fazê-la hoje numa alusão aos sofrimentos do homem contemporâneo e sua atual guerra; talvez, fosse a mesma Guernica. E portanto, possuir o mesmo valor. Assim, a pluralidade e extensão de leituras sobre Guernica a fazem ser uma das obras-primas capitais da nossa história da arte e da vida humana.
Segundo Charles Baudelaire, o natural é medonho. Em Guernica, infelizmente, constatamos que seu lado social associa-se também ao natural dos infortúnios do nosso cotidiano. Não são apenas as mazelas da guerra, porém do descaso do poder, da fome, do abandono de pessoas, etc. Sem desviar dessa questão social, o meio sutil (quase subjetivo) com o qual Picasso faz a sua denúncia, sem confrontar-se em particular com nenhuma facção política ou civil, é de elegância indescritível. Mas a ironia é mais inteligente e eficaz, já que aquela elegância formal disfarça indicar o culpado; enquanto sofremos um certo constrangimento, um lapso de mea culpa.
Termino esta argumentação com um trecho sobre a 2ª Guerra Mundial da escritora Marguerite Duras. “A única resposta para esse crime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-lo. Assim como a idéia de igualdade, de fraternidade. Para suportá-lo, para tolerar a idéia, partilhar o crime. (…) Não acuso ninguém, nenhuma raça, nenhum povo, acuso o homem. (…) Mas, quando se trata de homens, de onde virá essa capacidade de ferir, de acostumar-se com isso, de fazê-lo como a um trabalho, um dever?”.
O mais vertiginoso é que esse crime é todos os crimes. Sinceramente, não sei se Guernica pode mudar de maneira prática algum fator comportamental, mas o intelecto é mexido. E se assimilarmos a obra como um ensurdecedor grito de dor – já é alguma coisa.
*Publicado no Jornal do Commercio em 09 de abril de 2003.