Vermeer, A Leiteira (1658-1660)
Enquanto Recife ainda comemora o sucesso da mostra de Albert Eckhout, realizada com êxito pelo Instituto Ricardo Brennand, e que nos dará a oportunidade de contemplar um outro nome importante da pintura holandesa: Frans Post. Aqui em Madri, Vermeer mestre em retratar o interior holandês do século XVII, é festejado pelo público e crítica especializada. A exposição “Vermeer y el interior holandés”, no Museu do Prado, traz pela primeira vez à Espanha nove obras-primas deste pintor. No entanto, a mostra compreende 40 quadros que abrange artistas emblemáticos da pintura de gênero que constituíram o panorama deste estilo.
No âmbito dos fatos, o grito pela paz ecoa pelo centro de Madri. A população confronta-se aos gritos “No a la Guerra” com a polícia. Esta, por sua vez, tenta colocar ordem à massa que se manifesta nas escadarias do Congresso de Deputados. As “marchas” indicam a indignação contra o apoio de Aznar/Espanha aos Estados Unidos. Mas a vida continua dentro dos museus… E lá, encontramos o esplendor da obra de Johannes Vermeer (1632-1675). Mais precisamente, das mulheres de Vermeer.
As mulheres retratadas pelo artista holandês revelam uma atmosfera minuciosa da vida doméstica daquela época. Nesse sentido, a exposição reúne ainda artistas contemporâneos a Vermeer, cujas obras relevantes nos ajudam a compor a perspectiva deste gênero pictórico com cenas de cotidiano e de interiores do século XVII. Este estilo de pintura teve seu auge de excelência nos Países Baixos no período de 1650-1675. Configuram o panorama deste exercício de descrever a vida humana, artistas como: Jan Steen, Gerard Dou, Gerard ter Borch, Gabriël Metsu, Pieter de Hooch e Nicolaes Maes.
A perfeição das imagens de Vermeer denota a essência da pintura de interior holandesa. As imagens constituem uma homogeneidade quanto ao léxico técnico e à percepção apurada da realidade. Assim, podemos destacar a precisão da composição, da representação da luz e das similitudes dos objetos retratados. De modo que, o mais surpreendente destas obras surge do realismo pictórico que apresentam. Em termos de estilo, a pintura de gênero holandesa constrói a representação da realidade por meio de um alto nível técnico e óptico (com a utilização da câmara escura, que alguns artistas usavam para seu ofício).
De tal maneira que, Vermeer, revela em suas obras a primazia do detalhe, o instante banal da rotina doméstica com esplendor e atmosfera enigmática. Tais imagens são como o espelho da natureza. Por certo, também devido à visão de mundo cientificista daquele século, o olhar estava voltado para as referências micros das coisas e dos seres. Contudo, não apenas a forma reverberava uma plasticidade envolvente pelo seu alto grau de verossimilhança. Ou seja, o conteúdo destas representações de mulheres – em afazeres domésticos, em atitudes de escrever ou ler uma carta, em pôr um colar de pérolas ou em tocar um instrumento musical – está repleto de simbologia. Além de significados inerentes ao contexto social no qual estes pintores viviam.
A intensidade das mulheres protagonistas destes quadros indica um desvio do olhar artístico. Isto é, o papel da figura feminina é iconoclasticamente elaborado por Vermeer. São retratos femininos que representam a si mesmas, passaram da condição estrita da alegoria e das figuras religiosas que a arte comumente as condicionavam. Na tela se contempla o papel social das mulheres holandesas no século XVII. A intimidade feminina, o frescor de semblantes apaixonados, a condição de pureza, a sedução através de instrumentos musicais, a criação dos filhos, a atitude das viúvas diante das tarefas do lar são temas tratados além da beleza, dos conceitos diáfanos, etéreos e mitológicos de outrora trabalhados. Dessa maneira, portanto, ao transcender o cotidiano, Vermeer excursionou pelas nuances da alma feminina.
*Publicado no Jornal do Commercio em 01de abril de 2003.