Albert Eckhout – Frutas
Durante 24 anos (1630-1654), a ocupação holandesa no Nordeste brasileiro delegou para a História tanto uma memória de acontecimentos, entremeada de conquistas como de batalhas, quanto uma documentação visual preciosíssima. De certo, foi a presença fulgurante do Conde Maurício de Nassau-Siegen, como governador, representante da Companhia das Índias Ocidentais, que proporcionou o registro iconográfico do Brasil holandês em sua permanência de sete anos (1637-1644).
Tais fontes documentais trazem em si muito mais do que um contexto histórico, temporal e cultural; revelam, através de signos, o visível e o invisível inerentes às grandes obras artísticas.
No mês de abril, o prefeito da Cidade do Recife, Roberto Magalhães, seguirá para Amsterdam com a tarefa de assinar um convênio, no qual o Recife (Cidade Maurícia, capital do Governo de Nassau) e Amsterdam passarão a ser cidades-irmãs. Certamente, este interlúdio oficial será pertinente e louvável para estreitar ainda mais a relação cultural entre as duas cidades.
Contudo, outro evento, também em abril, ilustrará como foi o Brasil holandês no século XVII. Este sim, terá uma importância extraordinária e, sobretudo, impactante para a população do Recife.
Através da exposição “O Brasil e os Holandeses”, organizada pelo Banco Real/ABN Amro Bank, e que já excursionou por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, será literalmente o desvelamento de um período por meio da visão, de perceber a história graças às nuances pictóricas.
Maurício de Nassau, segundo o historiador inglês C. R. Boxer, era “o Príncipe humanista no Novo Mundo”. Seu empenho em trazer um missão artística na sua comitiva proporcionou a vinda de pintores vigorosos como Frans Post, Albert Eckhout e Zacharias Wagener, que indelevelmente fixaram a representação do Novo Mundo, fornecendo a construção do conhecimento da paisagem e da etnografia.
Entretanto, Nassau também ampliava seu mecenato para as ciências, sendo assim um incentivador das investigações na história natural, da botânica e da zoologia dos trópicos. A fauna e a flora foram, exaustivamente, apreendidos como objetos de pesquisa para o botânico Georg Marcgraf, Johannes de Laet e o médico de Nassau, Willem Piso.
As pinturas e os desenhos produzidos pela missão artística e científica holandesa revelam o realismo descritivo, e demonstram ainda a hibridez que possuem e com a qual transitam entre a História da Arte e a História Natural. É perceptível o esforço em ser verossímil com a realidade da natureza, com o apuro pictórico ou com o detalhismo filigranado. Tal qualidade visual perpassa, principalmente, o trabalho dos mestres da pintura holandesa: Post e Eckhout. O primeiro consegue ser etéreo com cenas e paisagens coloniais; já as composições de Eckhout são um legado do olhar europeu diante dos nativos brasileiros.
Datam do século XVII as publicações mais importantes que arregimentaram esses trabalhos visuais; na verdade são obras de referência da literatura científica. Em 1647, Gaspar Barléu edita a obra que sintetiza a passagem de Nassau pelo Brasil, o Rerum per Octennium in Brasilia Et alibi nuper gestarum, sub praefectura Illustrissimi Comitis Johannis Mauritii Nassoviae & G. Comotis. Outro título fundamental é Historia Naturalis Brasiliae, de 1648, resultado das investigações de Marcgraf, Laet, Piso e Eckhout.
Mas, há dois livros deslumbrantes, estando estes ao alcance do público,de qualidade gráfica impecável. São eles: O Brasil dos Viajantes, de Ana Maria de Moraes Belluzzo (Metalivros, 1994) e O Brasil e os Holandeses, organizado por Paulo Herkenhoff (Sextante Artes, 1999). Este último faz parceria com a exposição homônima citada neste artigo. Do ponto de vista da reprodução visual do período holandês, de outras missões artísticas no Brasil e do mapeamento de imagens de períodos férteis do imaginário dos viajantes e desbravadores coloniais, trata-se de verdadeiras pérolas. Pois, a possibilidade de encontrar pinturas e desenhos raros reunidos em edições primorosas é mais do que um deleite, é um privilégio.
Os textos desses livros também são importantíssimos; Belluzzo logrou roteirizar a iconografia do exótico na percepção dos viajantes em terras estrangeiras de maneira didática e abrangente. Já, O Brasil e os Holandeses possui textos de autores como Evaldo Cabral de Mello, José Antonio Gonsalves de Mello, José Luís Mota Menezes e Leonardo Dantas que se atêm ao “tempo dos flamengos”.
A última Bienal de São Paulo (1998) teve como temática do seu núcleo histórico “Antropologia e História de Canibalismos”. Lá estavam telas de Albert Eckhout, Frans Post, Jan van Kessel, entre outros. Todas pinturas vistas e revistas por reproduções em livros. Porém, nada se iguala a estar diante, por exemplo, dos retratos de índios e africanos de Eckhout. É não menos do que perder a noção das coisas, naquele momento, ao ficar frente a frente com telas de mais de dois metros de altura, ou seja, pinturas de pessoas em tamanho natural. A perfeição com que os personagens foram representados é algo que chega a tirar o fôlego. Deveria ser um direito de todo cidadão brasileiro contemplar as obras de Eckhout, pela chance de sentir o passado, de observar pelo distanciamento do olhar do atual espectador e sutilmente entender a alteridade do olhar do pintor. Não deixa de ser uma grande oportunidade, sobretudo, de conhecer o período da ocupação holandesa no Brasil por intermédio de códigos visuais – os quais constituem também uma das formas mais sedutoras de se inserir na História do país. Afinal, os trabalhos foram inspirados no Nordeste e revelam a elaboração de uma interpretação antropológica do Novo Mundo (nesse caso, os nativos brasileiros).
Apreciar como os holandeses tentaram captar a diversidade cultural do “outro” (enquanto exótico e desconhecido aos padrões europeus), e inventariar o universo da fauna e da flora do Brasil, é deixar-se seduzir pelos ícones e símbolos representados pela acuidade visual dos artistas e cientistas holandeses, perante as diferenças e singularidades do povo conquistado. Se as pinturas holandesas fomentadas por Maurício de Nassau surgiram pelo ímpeto científico, é inegável que a aura artística inerente a elas se entrelaça aos significados epistemológicos. O caráter simbólico e subjetivo que pinturas e desenhos possuem permite transcender o conteúdo descritivo; portanto, tornando-se sensível e contundente como obra de arte.
Na contemporaneidade, além daqueles que necessitam desse material iconográfico como subsídio para pesquisas, o vigor desse patrimônio histórico-cultural reside na beleza da forma, na interpretação do imaginário retratado e na transposição de contextos temporais – entre passado e presente. Sem contudo deixar de lembrar que o Brasil dos holandeses do século XVII, certamente, será desmembrado (numa espécie de antropofagia intelectual) pelos espectadores de hoje, com o enfoque dos conquistados sobre a aventura dos conquistadores. Desse modo, compreender a leitura de quem formula a imagem e quem fora representado será um exercício de contato com instigantes visões de mundo.
*Publicado no Jornal do Commercio em 30 de março de 2000.