O nascimento de uma mulher

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Foto: Richard Avedon – Margerite Duras (1993)

Sofri uma traição. Muito por minha culpa. De deixar-me envolver por uma trama de fatos e palavras.

De pensar que há pessoas fortes ao extremo, capazes de suplantar as maiores dores da alma e de continuarem sendo superiores à vida que vivemos. Reconheço, sofri uma decepção, daquelas que te deixa sem norte, que te dá um soco no plexo. É bom dizer que foi, digamos, uma traição ideológica, quase metafísica, de imaginar e criar uma memória visual sobre uma pessoa que sequer lhe induziu a nada. Fui eu mesma que depurei todo um arcabouço simbólico sobre uma mulher que em certos momentos consolava, dava pistas, quando não respostas, para muitas dúvidas e sentimentos. Que plasmava a possibilidade de ser forte, pungente e realista, mas mesmo assim ser poética. De sempre quase morrer pelas suas dores profundas e sobreviver a elas. Fui eu mesma que criei a imagem mítica de Marguerite Duras. E, por acaso, digo melhor, por encanto, a verdadeira Marguerite surge num retrato de 1993, feito pelo fotógrafo americano Richard Avedon.

A obra de uma das maiores escritoras da literatura francesa do século 20 alimentou a minha imaginação. Detentora de narrativas imagéticas profícuas, de uma escrita autobiográfica que alinhava as minúcias da memória, de detalhes de “cenas” contadas com esmero. Enfim, a imagem no sentido irrestrito sempre esteve presente em seu discurso. Imagens insinuadas por outros nos indicam, dão atalhos, mas nunca serão únicas ou sequer semelhantes ao que nós mesmos vejamos ou imaginemos.

O sentido da visão, do recurso em escrever evocando imagens a converteu em uma das mais habilidosas de estilo “cinematográfico”. Não por acaso também foi roteirista e cineasta. O roteiro do clássico filme Hiroshima Mon Amour (1959) de Alain Resnais foi escrito por Duras. Ela própria dirigiu mais de 15 filmes. O realismo presente em seus romances reflete-se na contextualização e composição pelas quais ela expõe suas personagens, convertendo sua obra numa espécie de “roteiro de filme”. Tal é sua riqueza de nos transpor – não só pelas idéias, pelo percurso narrativo de sua história –, mas de provocar o deslocamento do olhar do leitor para a personificação das cenas. Estabelecendo assim o reconhecimento de um espaço e de um tempo das situações narradas. É o olho de Marguerite Duras, sua acuidade visual em descrever o real para adentrar nas emoções e sentimentos, que guia o olhar de quem lê sua obra. Mas esse olho não é o que reconhece objetos e realidades, é o olho da mente.

Dentre os livros da grande senhora Duras, imagem e fotografia transitavam por sua escrita. A imagem que se pensa, que se retoma na memória, a imagem e seu poder de revelação, reflexão, reconstituição, da ausência, da presença… Em O Amante (1984) – seu livro bestseller escrito aos 70 anos, fora agraciado pelo prestigiado prêmio literário francês Goncourt – e, no ano seguinte, em A Dor o recurso da inflexão sobre a imagem é recorrente. No O Amante, desde a primeira página, a palavra imagem é escrita e a questão da imagem fotográfica cria um ritmo singular ao discurso da autora; já no segundo, vários parágrafos assim se iniciam: “A imagem…”.

Sobre certa travessia do rio, Marguerite Duras (no O Amante) narra: “É no curso dessa viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto. Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outro lugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. O objeto era miúdo demais para tanto. Quem iria pensar nisso? Ela só poderia ter sido tirada se fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, enquanto esta ocorria, até mesmo sua existência era ainda ignorada. (…) É a essa falta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente a sua autora”. A imagem não perenizada que Duras sugere só depois é descrita. Entretanto, o sentido profundo do seu não existir revela a importância que delega à ausência e existência das imagens em sua vida – vivida e lembrada.

Comigo passa o mesmo. E assim aconteceu. O olho de quem sente as imagens projeta arquétipos, idealizações e cria a sua própria imagem sobre o outro. Desde muito jovem, descobri um universo através do vigor da escrita desta autora. De maneira que Duras era palavra e imagem. A imagem de uma intelectual forte e arrebatadora e de outra imagem (fixada por fotografias), a de uma mulher elegante e altiva. Seu olhar, não era um mero olhar, ele sempre “encarava” o outro lado, penetrava na objetiva, nos inquiria, colocando-nos à prova de sua presença definitiva. Assim era: o visível e o invisível, o que seduz e torna a imagem mágica.

Os retratos fotográficos de Marguerite Duras em preto e branco são belos; em especial, o de Robert Doisneau. Mulher de estatura pequena cuja dimensão era velada pela composição clássica dos retratos. Ela, de corpo inteiro, despojada, livre e feliz nunca a tinha visto. Foi o renomado fotógrafo americano Richard Avedon (1923–2004) que a trouxe para o mundo prosaico dos seres humanos. Três anos antes de sua morte (1996), aos 79 anos, Duras é fotografada em Paris por Avedon. O retrato segue o estilo autoral de Avedon, fundo branco, luz lateral e o principal, a pessoa centralizada na composição, ou seja, o porquê daquela imagem existir. Esta era a essência do seu olhar. E foi através da sensibilidade da percepção visual deste fotógrafo que a lendária escritora, autora de cerca de 50 obras publicadas (entre romances, peças e roteiros de cinema) irrompeu o meu imaginário. O simbolismo criado a respeito da imagem daquela mulher tornou-se frágil, vulnerável… Não tinha visto aquela imagem até então. E isso fazia toda diferença.

A imagem de uma simples velhinha, baixinha, sorridente, graciosa, brincando com o momento da pose poderia ser de qualquer mulher, caso não estivesse identificada pela legenda. Seu gesto na fotografia de levantar um pouco – quase que infantilmente – a saia é a ruptura. É bom que se diga, a saia em questão transforma-se numa quase minissaia. A cena pitoresca é arrematada pelo estonteante par de botas. A atitude com a qual ela define sua pose conota algo improvável para uma renomada dama da literatura francesa, tida com difícil, sisuda e que se irritava quando não a tratavam como a maior escritora francesa. Ao me deparar com essa imagem, o meu olhar se renovou, como se nunca tivesse visto uma senhora de forma tão jovial e leve de espírito ter se permitido perenizar sua imagem daquela maneira. Mas devo relativizar o que elaborei em minha percepção até ver o registro de Avedon. Digamos que foi mais um susto do que uma traição, porque se não conhecia aquela imagem, ela não existia para mim. É a mágica da presença fotográfica: reconsiderarmos a vida a todo instante. Repleta de novos significados naquele fotograma de Avedon, Marguerite Duras renasceu para mim.

* Artigo sobre esta fotografia da escritora francesa Marguerite Duras feita por Avedon. O texto foi publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural, (setembro de 2008).

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