O artista plástico Jonathas de Andrade está envolvido na produção de dois projetos que foram selecionados para o 47º Salão de Artes Plásticas de Penambuco e para a Funarte. Nesta entrevista, Jonathas nos explica um pouco sobre o seu processo em Condução à Deriva e Documento Latinamérica, que tem a América Latina como cenário. Jonathas respondeu ao Olha, vê entre uma cidade e outra, durante a sua viagem. Para ilustrar a entrevista, uma foto do novo projeto e duas de ensaios recentes do autor.
Vale o registro que Jonathas estará expondo o seu último trabalho, Ressaca Tropical, na 7ª Bienal do Mercosul, que acontece em Porto Alegre no mês de outubro e novembro.
Outras entrevistas da série Processo de criação, aqui. Veja o processo de João Castilho, Anderson Schneider, Pedro David, Cia de Foto e Rodrigo Braga.
Esta entrevista encerra a Parte 1 desta seção. Para quem pegou o bonde andando, o que é a seção Processo de Criação.
Cordilheira dos Andes
OLHA, VÊ Sobre o tema, “Condução à Deriva”, gostaria de saber sobre as motivações para desenvolver o tema.
JONATHAS DE ANDRADE Em 2002, estive na Argentina. Foi a primeira vez que saí do Brasil para um outro país latinamericano. E cheguei a Buenos Aires no meio de uma crise econômica fortíssima, com as pessoas na rua fazendo panelaços, protestando nas portas dos bancos e se organizando por bairros, em assembléias semanais. Um caos social em estado de preconvulsão revolucionária, uma vivência política que nunca havia experimentado diretamente. Passei a frequentar esses espaços e fui levado a sentir pela primeira vez o que entendi ser uma experiência de latinidade, inédita para mim, como se algo pessoal me aproximasse àquela condição. Entretanto, para um brasileiro como eu, ser latinamericano é uma contingência tão ficcional que mais parte do livro de história que de qualquer estado de espírito. Experimentei voltar ao Brasil adotando a ficção intima de ser latinamericano antes de ser brasileiro, buscando reconhecer mais pistas deste sentimento que me foi provocado e buscando resgatar à tona os comportamentos que ele evocava.
Em 2008, tive contato com a pesquisadora e psicanalista Sueli Rolnyk, que falava de uma idéia de trauma histórico como memória do corpo nas gerações pós-ditatoriais. Fazia muito sentido para mim pensar a apatia e falta de motivação política existentes na minha geração como um ranso de uma época anterior, repleta de repressão e censura à criação política e artística. A geração de meus pais conheceu a atuação política dissidente e de esquerda associada à morte sumária e ao desaparecimento de corpos. O resultado do medo foi a aniquilação da resposta, da alternativa, da tentativa, e de uma série de articulações em vários campos – artes, arquitetura, economia, política, música, academia, etc – que vinham se adensando à época. Um projeto interrompido por via da força.
A partir destes dois encontros, o projeto Condução à Deriva : Documento Latinamerica começa a ser concebido com mais força. Quando fez muito sentido pensar numa idéia de um amnésia histórica, me tomando como célula de um corpo geracional e neste corpo identificar que minhas próprias células poderiam estar adormecidas para reagir e criar novas respostas.
OLHA, VÊ No que consiste o projeto?
JONATHAS DE ANDRADE Propus uma viagem de reconhecimento de território e sentimento por 6 países da américa latina. Através deste trânsito, montar uma coleção de objetos – fotografias e pedaços de vídeos – trazidos de alguma parte desses países, uma coleção de fato de outro tempo, um outro personagem que com suas motivações me presenteia com este tempo anterior a mim. Por via de seus desejos, tateio este território com passos não meus. Esta jornada é tratada com a formalidade de um achado histórico e, com precisão arqueológica, acesso um tempo suspenso, latinamericano, a que todos compartimos e estamos submetidos, no limbo ou na vibração.
OLHA, VÊ O projeto para a Funarte, “Documento Latinamérica”, é diferente do Salão? Existem interseções?
JONATHAS DE ANDRADE Os projetos têm a mesma base conceitual de pesquisa e são frutos do mesmo trânsito. Inicialmente, propus trabalhar diferentes ferramentas para cada um, separando o campo da fotografia e do vídeo. Mas cada vez mais tem feito menos sentido separar meu trabalho nessas categorias. As demandas me trazem necessidades e o trabalho responde de formas muito híbridas a elas. Entretanto, as relações entre o que nele é vídeo e o que nele é fotografia mantêm a dualidade da pesquisa neste corpo do trabalho, e me trazem potência nesta interseção.
OLHA, VÊ Quais foram os países e cidades visitadas?
JONATHAS DE ANDRADE Por enquanto, Argentina, Uruguai, Chile, Bolivia e Peru, e entre as cidades de passagem mais marcante, Buenos Aires, Montevideo, Rosário, Cordoba, Maipu, Mendoza, Santiago, Rancagua, Valdivia, a Ilha de Alao, Valparaiso, San Pedro de Atacama, Uyuni, Potosi, La Paz, Cusco, Lima.
Amor e Felicidade no Casamento, 2007
OLHA, VÊ Qual a situação atual do projeto?
JONATHAS DE ANDRADE Planejo mais um mês de viagem e volto pra Recife. Nestas semanas restantes, vou finalizar algumas experiências que já comecei e quando voltar, vou trabalhar no material coletado e entender o destino do projeto. É a segunda fase do projeto e a mais difícil, onde vou despender mais atenção.
OLHA, VÊ Os objetivos foram preestabelecidos ou não? À Deriva foi uma “rota”?
JONATHAS DE ANDRADE Embora houvesse preestabelecido regras, andei a maior parte do tempo fora de rota, bastante perdido, de bússola quebrada. Cheguei a adotar minha sombra como norte, até que vieram outros ajustes, outras coordenadas e magnetismos. Pensei que o desejo iria me orientar, porém muitas vezes ele se diluía na paisagem. E o que sobrava? A paisagem estupenda, esta que tanto acreditei por via da fotografia, diante de mim, se apresentava estéril. Ainda não entendo bem o que significa esta experiência. Talvez o sentimento de pós-guerra; o dar passos entre tempos históricos, sentimentos que incorporei em minha proposta inicial e que de certa maneira possa tê-los vivenciado. Não sei se exatamente falta de emoção, pois ali, o vazio, a dormência, a invisibilidade não tinham nada a ver com tristeza. Eu andei até de certa forma contente. Foi bastante um neutro absoluto, onde experimentei estar a maior parte do tempo inteiramente perdido.
OLHA, VÊ As suas exposições sempre se destacam pela montagem. Você já pensa em algo para mostrar como resultado?
JONATHAS DE ANDRADE A montagem é um trabalho de edição que fixa uma das possibilidades de materializar as relações de um certo conteúdo. É desdobramento do trabalho, mais que conclusão ou objetivo. É mais um lugar de experimentação tanto para o artista quanto para as pessoas que através dela tomam contato com a obra. Mais ou menos como a viagem, ela se faz a partir do equacionamento de hipóteses e proposições com experiência e produtos gerados a partir delas que as reconfiguram e ressignificam. De certa forma, ela está submetida ao mesmo jogo de inversão entre cavalo e cavaleiro, entre conduzir e ser conduzido que permeia, organiza e desorganiza a viagem. Acredito que preciso concluir esta etapa do projeto para pensar com mais clareza em possibilidades de montagem.
Ressaca Tropical, 2008