Era para ser um simples encontro…

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Fotos: Georgia Quintas

Era para ser um simples encontro… O sujeito dele: Júlio dos Santos.

Iria conversar um pouco com ele, assistir à sua oficina. Entender um pouco mais sobre fotopintura. Sua especialidade. Já sabia que seria uma experiência enriquecedora. Apreciaria as fases desta técnica como a reprodução, revelação, ampliação, contorno, retoque, roupa e afinação. Afinal, ver in loco a imagem se transformar pelas mãos de quem ainda realiza fotopintura seria quase como presenciar uma insurgência. E tudo isso me interessava por motivos empíricos, teóricos e históricos.

Mas, foi muito mais. Vivenciei, não seria exagero dizer, uma aula magna. Poucas pessoas, uma sala antiga e um silêncio que parecia anunciar o rigor das palavras que estava por vir… Quando ele iniciou sua apresentação em tom coloquial, ficou claro que não se tratava de um profissional qualquer. O discurso era denso. Conhecedor detalhista da história da fotografia, contextualizou técnicas e contou fatos sobre o seu métier: a fotopintura. Com trinta anos de profissão, o homem na minha frente era a prova que fotografar ou utilizar esta linguagem para expressar-se é a conquista de um caminho nebuloso. Pois, a fotografia não seria a tentativa de solucionar questões desejadas pela mente e o olho? Ele me respondeu ao seu modo, contando sua vida que se mesclara à fotografia pelo talento do pai Didi, de seu amor, dedicação, tino comercial e, sobretudo, valorização ao seu ofício e arte. As lágrimas vieram, após lembrar que as coisas andam difíceis e que nós mesmos não valorizamos esta técnica – que se diga, historicamente, não se sustenta mais por uma necessidade formal e de definições no campo artístico da fotografia. O choro era mágoa. A realidade dele era de formar meninos de poucas possibilidades na vida e oferecê-los uma profissão em seu ateliê e estúdio de fotopintura. Na década de 1970, chegou a ter vinte funcionários, entre eles garotos de rua numa ação social consciente.

Ficamos em silêncio, respeitando o amor que caía das lágrimas e alma que tentava se recompor para prosseguir. Naquele instante, a fotopintura se dissolveu no discurso daquele sábio homem. A justaposição de questões filosóficas que perfaziam seu raciocínio encantou a todos que estavam na sala. A atmosfera era de comoção porque o pensamento crítico em sinergia nos chamava à razão, à clareza dos fatos. De como é árduo sobreviver às vicissitudes de ganhar a vida com fotografia.

Era para ser um simples encontro… O sujeito não me respondeu, me interrogou.

Particularmente, ando “desconfiada” de muita coisa, buscando alguns discernimentos no campo da criação fotográfica. E me deparo com a tranqüilidade sobre o retrato, sobre o desprendimento autoral, a importância do outro no processo de percepção, a fluidez de quem começa, mas não teme o fim.

Com a era digital, as tintas nas mãos foram trocadas pelas virtuais. O problema era continuar dando “dignidade ao retrato, pois o meio seria outro, mas os artistas os mesmos”. A fotopintura de Júlio é um procedimento coletivo. A autoria? Quando se coloca o espírito e a alma naquele retrato, já é do mundo, de quem vê, não é mais do fotógrafo. Simples assim. “O retrato é encantador mesmo, não me sinto dono dele”.

Pensemos, o fotógrafo desvencilha-se do seu mundo provável para construir um léxico de significados que agregue parábolas. Alguns mais poéticos, outros mais realistas, mas todos têm a intenção de comunicar sua ideia, seu espírito, o que seja. No caso de Júlio, a busca é que o outro retratado ganhe a vida que, às vezes, parece nos fugir e embaça nossa identidade. Recria-se a pessoa. Não teria sentido na fotografia recriamos para deparamos com o simbólico e com a memória a cada novo olhar de contemplação? Teria sim.

Foi um encontro…

Para que lembremos que os retratos de família estão sempre na parte superior da parede para reverenciá-las, não é mesmo Júlio? Porque eles (esses mesmos retratos) representam alguma coisa para alguém e porque o que importa a Júlio é: “Me tatuar na parede dos outros”.

Júlio não pinta a fotografia com as mãos, pinta com a alma. Fotopintura não é reminiscência, coisa do passado. Não morreu. É presente, é ação colaborativa, doação e dedicação a magnitude simbólica do retrato. A fotografia é dada, refeita, reconduzida, ficcional. Tudo consentido e ansiosamente esperado por quem a deseja.

Na despedida, poucas palavras. As lágrimas voltaram.

Lindas tardes. Inesquecíveis!

***

A oficina com Mestre Júlio ocorreu durante o SPA das Artes 2009, no Recife, em setembro, no Hospital Ulysses Pernambucano.

Comentários 16

  1. Tenho interesse no livro publicado sobre Júlio Santos – Mestre da Fotopintura. Pois esse tema será abordado na tese do mestrado em Processos e Manifestações culturais. Gostaria de saber como faço para adquirí-lo??? Aguardo Resposta.
    Att.
    Guadalupe Vieira

  2. Olá Georgia! Gostei muito da sua reportagem com o Mestre Júlio, mas eu gostaria de saber uma coisa, ele é vivo? como posso encontrá-lo? Pois tenho muita vontade de ter o meu retrato pintado.Se poder me responder, te agradeço muito.
    Atenciosamente, Mirian Elias

  3. Boa tarde!
    Sou Mestrando em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Desenvolvo um trabalho baseado em fotopintura sob o Tema RETRATOS DE FAMÍLIA: RE-SIGNIFICAÇÃO DE IMAGENS AFETIVO VISUAL. Sempre me vi as volta de uma foto pintura de meus pais na época de seu casamento, meu pai dizia que fora feita em São paulo em 1969, a questão é que tem a assinatura de um tal Godoy no fundo do retrato, mas não sei nada à respeito de tal artita. Também já vi várias vezes na TVE e na TV Escola o documentário Mestre Júlio e o Retrato Pintado, é de uma emoção única, é como se o mistério da esfinge me fosse revelado. Hoje desenvolvo um trabalho com ecos da foto pintura, poém sou artista plástico, me aproprio dos fundos chapados, as vezes dos ternos, paletos e gravatas. Gostaria algum dia de ouvir ou ler as palavras de mestre Júlio.
    Belo trabalho Júlio.

  4. Acho linda essa técnica, quando vou para o sertão costume observa muito dessas pinturas
    nas casas. Tenho na cabeça uma foto pintura de um amigo meu que é ele com uma camisa do flamengo. Talvez uma encomenda a o mestre Júlio seja um auto retrato projetado nos nossos sonhos através das mãos dele. Espero um dia ter oportunidade de conversa com ele.

  5. Olá Georgia,

    Meu nome é Lua Morena Cruz, sou pernambucana, moro em São Paulo, sou estudante de pos-graduação em fotografia e tema do meu trabalho de conclusão de curso tem relação com fotografia popular, ambulante e fotopintura. Irei para Recife no final de dezembro para visitar familiares, mas gostaria de trabalhar no meu projeto. Vi o seu post sobre o Júlio dos Santos e gostaria de saber se você tem o contato dele para eu tentar conversar.
    Seria um prazer conhecê-la, também.

  6. O mais gostoso são os passaros no fundo e paciência desse mestre.
    Gratificante. Vou dormir pensando nessa magia.

    Gosto muito dos seus textos Georgia.

    abraço

  7. GEORGIA,QUE PRAZER CONHCE-LA..
    NÃO SOU NADA..NINGUEM INFLUENTE..NINGUEM A FAZER MARAVILHAS..SOU EU SÓ:LÍVIA E, HOJE JA TE SINTO AMIGA…
    HOJE AO LER SEU TEXTO E ESTAR PRESNTE EM ALMA COM VC. E MESTRE JULIO, CHOREI COM VC…VIVI INTENSAMENTE O MOMENTO…CADA INSTANTE..
    PARECE QUE JA O CONHEÇO HA ANOS…CADA PINCELADA…CADA GESTO…TENHO UM CARINHO TÃO GRANDE QUE ME PERMITO TE DIZER: VC. É BRILHANTE…CONSEGUIU REPRODUZIR TODO MEU SENTIMENTO, MINHA ADMIRAÇÃO NESSE TEXTO DESLUMBRANTE…
    MINHA DOCE AMIGA… SE EU PUDESSE, LEVARIA ELE E SUAS TELAS A TODOS PARA ENTENDEREM E TEREM O PREVILEGIO DE CONHE-LO E A SUA LUTA PARA CONTINUAR E NÃO DEIXAR MORRER ESSA ARTE DE “SE TATUAR NA PAREDE DOS OUTROS”.PARABÉNS!!VC. É LINDA!
    OBRIGADA.
    MEU BJU CARINHOSO
    LÍVIA CUNHA

  8. Georgia,
    É sempre um prazer passar por aqui. Além disso, gostaria de lhe dizer que tive imenso prazer ao ver uma foto minha ilustrando seu texto, no blog do Paraty em Foco. Há tempos persigo a idéia do cotidiano e suas palavras traduziram exatamente minha intenção: “E como é bom pensar nas fotografias simples, do cotidiano. Ou seria da ideia que tenho do cotidiano dos outros. É, diante destas belas e aconchegantes imagens fotográficas, minha vontade é imperfeita… Mais uma vez, explico-me melhor. Vontade de continuar sem rumo, com o olhar desassossegado”. Forte abraço, Myriam Vilas Boas

  9. Muita emoção. Com 16 anos, na década de 70, pela janela, vi alguns cavaletes na casa do vizinho novo. Como sempre desenhara e gostava muito de pintura, imaginei que o vizinho fosse artista, pintor… Curioso, fui falar com ele. Descobri que ele trabalhava com fotopintura. A sintonia foi total: me contratou para ser seu ajudante. Assim começou a minha grande paixão pela fotografia.

    Georgia, parabéns!

    abraços

  10. Pena, não estive lá. Recentemente fiz uma relação com o trabalho dele, numas fotopinturas digitais do Thomas Baccaro, postadas no Facebook.

    Muito bacana teu texto Georgia, além de tudo uma poesia…

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