Para quem viu a exposição ou o livro Apreensões de Bob Wolfenson deve ter notado que o trabalho não foi fácil. Não é tão simples ter acesso aos objetos-protagonistas deste novo ensaio de Bob. As instâncias para obter um “ok” são muitas e isso está muito bem relatado no texto do livro (e estava na exposição).
São fiscais, policiais, delegados, etc, etc. Uma das pessoas que foram fundamentais para essa teia se desaninhar, foi o delegado mineiro Marcelo Augusto Couto.
Marcelo escreveu um texto que será publicado no site da editora Cosac Naify que gentilmente disponibilizou, com exclusividade, para o Olhavê.
Foto: Bob Wolfenson
Sobre Apreensões, de Bob Wolfenson
Por Marcelo Augusto Couto*
Minha relação diletante com a fotografia já me tornava admirador confesso do eclético trabalho de Bob Wolfenson, em sua projeção icônica no métier da moda, da nudez e dos retratos. Foi minha condição profissional de delegado de polícia, porém, que fez convergir nossas trajetórias. Ao tematizar as apreensões promovidas diuturnamente pela polícia, no front do combate ao crime, o último projeto autoral de Bob Wolfenson transitou em um território cujo acesso meu peculiar estatuto de policial-fotógrafo podia franquear. Foi portanto com especial contentamento que testemunhei a produção dessa série fotográfica, exibida inicialmente em rumorosa exposição em São Paulo e lançada agora em refinada edição da Cosac Naify.
As interfaces existentes entre o mundo da polícia e o mundo da fotografia não são triviais. As apropriações do substrato policial pelo prisma fotográfico, no entanto, quase sempre se rendem ao viés do fotojornalismo, de maneira que as capturas resultantes aparecem via de regra matizadas por uma série de estigmas imagéticos, induzidos ora pela premência frenética das redações, ora pelo denuncismo militante, ora pelo sensacionalismo estrepitoso da espetacularização da violência.
A abordagem que Bob Wolfenson dedicou ao assunto, todavia, é de natureza singular, e nisso revela um traço de genialidade. Ao se aproximar de armas, drogas, carros, animais e outras coisas apreendidas pela polícia, no Brasil afora, Bob reperspectivou o tema à luz de uma finalidade estética absolutamente original. Emerge daí uma polissemia verdadeiramente caleidoscópica: a polícia que apreende as coisas, o fotógrafo que apreende as apreensões da polícia, a apreensão, enfim, de que todos padecemos ao contemplar esses fragmentos da sociedade em conflito com a lei. Quantos enredos anônimos povoam essas imagens?
Nesses tempos de dissolução das fontes normativas legadas pela tradição, em que a faixa de fronteira que separa o permitido do proibido estreitou-se a ponto de cingir-se à letra da lei, naturalmente a atividade policial desponta no imaginário popular como protagonista mais emblemática da imposição da ordem. À sombra das narrativas universais da moral, da religião e da razão cientificista, aliás, a consciência social do brasileiro, como dizia Nelson Rodrigues, se resume hoje ao proverbial medo de polícia.
Nem por isso os dramas mediatizados cotidianamente pela polícia foram metabolizados com maturidade pela consciência coletiva, e tampouco pelos próprios policiais, narcotizados todos pela saturação informativa a que alude o fotógrafo na abertura do livro. Nesse contexto, o inquérito fotográfico que agora vem a público, por intermédio da lente hiperativa de Bob Wolfenson, tem a virtude de descortinar tempestivamente um ponto cego da vida contemporânea.
Ao realizar esse “inventário de uma certa tragédia brasileira”, o autor, afinal, desnudou a si mesmo na obra ora publicada. Insinua-se consequentemente aqui uma ressonância que vai além do encontro de um delegado com um artista. Pois enquanto policial, que aspira silenciosamente à vocação de fotógrafo, flagrei no olhar aguçado do fotógrafo Bob Wolfenson o espírito investigativo de um autêntico policial.
* 34 anos, é delegado de polícia e especialista em filosofia do direito