O espaço que guardamos em nós
Por Georgia Quintas
Ocupar espaços é inexoravelmente transitar por um tempo que será o futuro da nossa memória. Difícil desprender-se de histórias e lugares. Narramos de distintas maneiras as nossas passagens por espaços que habitamos. Somos recorrentemente envolvidos pela sensação de pertencer a algum território, a um lugar que nos acolhe (ou seria que acolhemos?). A casa, a moradia e o habitar passam a ser experiências revestidas de sensações. Vivemos em lugares nos quais vamos acoplando partes de nós. Por isso, talvez, termos a desconfiança de que os lugares possuem alma.
Na experiência de morar, os cantos são braços, a sala epígrafe de afetos, os quartos gavetas repletas de devaneios. Há poesia nos cantos, há poesia nas lembranças que construímos ao viver neles. Fazemos do ato de habitar a criação de paisagens íntimas e afetivas. No fundo, os espaços e as pessoas compõem um só corpo e muitos significados. Uma espécie de transbordamento de sentidos e recordações.
Em O espaço que guardamos em nós, estas questões são trazidas à tona. Afinal, passamos a habitar imagens através da fluidez da memória, do arquivamento do tempo que retém algumas realidades e umas tantas ficções. Nesse gesto de apreender quem fomos e somos, guardamos fragmentos turvos, alegorias do passado e sensações firmes do agora. Através da fotografia, os lugares se tornam possibilidade subjetiva e documento compartilhado.
Em Aluga-se, a poética sutil e luminosa do fotógrafo Pedro David, apresenta apartamentos desabitados, vazios, na iminência que alguém restaure o seu sentido. Embora sem elementos referenciais, sem as singularidades de um “inquilino”, é nessa ausência, no silêncio, que projetamos nossas memórias e fantasias. Já em Morar, do Coletivo Garapa, a investigação imagética é volumosa, híbrida em sua linguagem e antropológica em torno de questões sobre a existência e o desaparecimento de edifícios na paisagem urbana. Por consequência, do fluxo da memória de centenas de famílias que viviam naqueles mundos. Morar nos coloca diante da problemática e das fragilidades da moradia urbana. Um exercício de catalogação de desterro pungente.
Temos portanto, nesta exposição, dois modos de contemplar territórios privados com a mesma intensidade que nos apegamos a um lugar que desejamos sempre voltar. A fotografia é irredutível quando nos amplia olhares e sentimentos, mas é ainda mais indefectível quando faz da nossa imaginação a porta para a compreensão de nós mesmos com nossos espaços. Como diria o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962), “as casas para sempre perdidas vivem em nós! Em nós elas insistem para reviver, como se esperassem de nós um suplemento de ser”.
* Texto de apresentação da exposição “O Espaço que Guardamos em Nós”, no MIS/SP entre 11/11 ~ 11/12/2011. Exposição coletiva de Pedro David e o Coletivo Garapa com curadoria de Isabel Amado.
que mel para o meu pensar! Obrigada Georgia.