Acompanho e admiro o trabalho de André Vieira já faz um bom tempo e, creio, uma garotada nunca ouviu falar nele. Tá na hora de resolver isso. Fotodocumentarista empenhado, dedicado, sério e – mesmo sendo reconhecido fora do Brasil – André não faz firula. Só tem uma preocupação: mostrar a sua fotografia, contar uma história.
Publicar este Processo de criação com André Vieira, após o de Ana Carolina Fernandes, de certa forma, afirma uma das pegadas do Olhavê: acreditar e apostar cada vez mais em quem encara a fotografia com seriedade e como ofício.
André, ganhador de um World Press Photo em 2009, apresenta aqui no Olhavê um trabalho inédito chamado: Projeto Informal. A pesquisa é grande e está em estágio inicial. A entrevista é uma aula de como pensar, preparar e tentar viabilizar um projeto fotográfico de fôlego. Será um prazer acompanhar isso por aqui.
Fotos: André Vieira
André, nos conte sobre o projeto?
É um projeto sobre a economia informal, focando no seu lado empreendedor e distribuidor de oportunidades, ao invés de seu lado “criminal”, o mais abordado ao se falar do assunto.
Nos últimos dez anos viajei praticamente o Brasil todo fazendo matérias em lugares geralmente abandonados pelo estado, mas sobretudo no Pará, o mais abandonado de todos, que considero o nosso Congo. E o que encontrei foi um Estado que, apesar de ausente, impõe regras absolutamente impossíveis de serem cumpridas, baseadas num mundo ideal, que o próprio estado torna impossível de serem seguidas, por não estar presente. E isso torna praticamente todo mundo morando ali “criminosos” perante a lei, apesar de serem pessoas geralmente honestas e bem intencionadas lutando com muita dificuldade pra viver e prosperar. Essa “criminalização” é um tapa na cara de todos, pois tudo o que querem é poder se sentir parte parte da “sociedade direita”, cumprir seus deveres e receber de volta do estado o que lhes é de direito.
Essa questão sempre me consumiu, mas nunca consegui traduzi-la fotograficamente. Quando me deparei com o trabalho do economista peruano Hernando de Soto, que tentou quantificar quanto de “riqueza” potencial era excluído da economia de países em desenvolvimento simplesmente por não se considerar legítima a existência da parte informal da sociedade (não só trabalhadores informais, mas os assentamentos informais, a favelas, e suas frequentemente vibrantes economias), o interesse pelo assunto aumentou. O número é estarrecedor, na casa dos vários bilhões, e teria o potencial de transformar completamente a vida dessas sociedades.
Mas a ideia do projeto mesmo só surgiu ano passado, quando eu estava na Holanda fazendo um Masterclass com os curadores Marc Prüst e Lars Boering, ligados ao festival Noorderlicht. Queria encontrar um novo caminho pra minha carreira e entrei no Masterclass em busca de ajuda nessa virada. Fui para lá na esperança de encontrar um rumo para meu trabalho na Amazônia, que apesar de perseguir há dez anos, não tem cara nem forma. Meu interesse na região é a questão humana, não a ambiental (não que não me interesse pela questão, mas acho que a única solução pro problema ambiental passa por resolver o problema humano). Só que chegando lá o projeto foi impiedosamente detonado. Percebi que não sabia exatamente o queria dizer e que estava dando soco em ponta de faca, me colocando num beco do qual não encontrava uma saída, sobretudo por não encontrar quem se interessasse por minha abordagem do assunto nem aqui nem lá fora. O Lars e o Marc me fizeram ver que precisava parar tudo e refletir profundamente sobre o que realmente queria dizer, olhar pra outro lado, procurar outro caminho, outro projeto. Saí do Masterclass arrasado, completamente perdido em relação ao que fazer.
Aí me deu o estalo da economia informal. Não tinha muita certeza sobre o tema, mas me parecia um caminho onde poderia explorar tudo que me interessa na Amazônia, só que com uma perspectiva mais universal. Me dei conta de que as questões que me interessam no Pará não são exclusivas dele. E a economia informal é um tema urbano, mais em sintonia com as questões que me interessam no momento. Ando fascinado por cidades e urbanismo, sobretudo as mega cidades dos países em desenvolvimento, onde em breve morará a maior parte de população mundial.
Comecei então a pesquisar o tema, ver se já haviam outros projetos feitos, procurar trabalhos acadêmicos e matérias de jornais e revistas. E me choquei ao descobrir que não há praticamente nada sobre o assunto. E o que há é sempre focado no aspecto legal do tema, sobretudo seu lado com potencial criminoso. Do ponto de vista meramente econômico só encontrei um trabalho profundo, e de um jornalista, Robert Newirth, ao invés de um economista. Os números que ele apresentou me impressionaram ainda mais. Estudos compilados por Robert de relatórios do Banco Mundial e da OECD apontam que a economia informal hoje emprega cerca de 50% da mão de obra do mundo e movimenta cerca de 10 trilhões de dólares por ano. Se fosse um país seria a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. E a expectativa é que na próxima década até 2/3 da mão de obra mundial estará no setor informal. Fiquei estarrecido que algo tão grande seja tão pouco estudado ou discutido.
A partir daí não tive mais nenhuma dúvida sobre que caminho seguir. Meu objetivo com o projeto é discutir os mesmos temas que me interessavam na Amazônia: exclusão, o papel do estado, o papel do indivíduo, oportunidade, caminhos para o desenvolvimento, a busca de uma vida melhor. Minha tese com o projeto é que o modelo “formal” atual não tem as respostas certas para o mundo em que vivemos hoje. Ele é extremamente excludente. Premia quem é grande, atrapalha quem é pequeno e coloca uma barreira as vezes quase intransponível a quem está fora.
O projeto não é pra defender a informalidade. Não acho que ela seja solução. Mas pra questionar o modelo de formalidade que temos hoje. Se um modelo exclui exclui 2/3 da humanidade há algo muito errado com esse modelo. Minha intenção com o projeto é mostrar o dinamismo da economia informal, sua enorme criatividade e capacidade de adaptação. E sobretudo o fato de oferecer muito mais oportunidades que o mundo formal, distribuindo renda muito mais amplamente. Não pretendo oferecer respostas, não creio que seja esse meu papel, isso é para economistas, sociólogos, políticos. O que quero é introduzir a discussão sobre o tema sob um ponto de vista diferente do que encontrei em minhas pesquisas.
Qual será a dinâmica da produção das imagens?
Pra discutir o assunto resolvi dividir o projeto em cinco estórias independentes. Cada uma delas, feitas em países diferente, cobre um setor da economia informal com um equivalente forte no mundo formal. Pretendo passar um mês fotografando cada uma delas. Na verdade não é apenas um projeto fotográfico. Não acho que esse seja um modelo sustentável no mundo fotográfico de hoje.
Pretendo fazer um projeto multimedia, resultando num site dedicado à economia informal como um todo, reportagens para revistas e tvs, um livro de fotos, uma exposição, palestras e um documentário. Na verdade o que pretendo é me tornar um especialista no assunto enquanto durar o projeto (a expectativa são 3 anos), explorando qualquer caminho que ele oferecer. Vejo esse como a única maneira pra tornar o projeto possível financeiramente. Pretendo é me tornar quase uma agência de notícias sobre a economia informal onde a fotografia é a atração principal, mas não o único foco. As cinco estórias são o eixo principal do projeto, o que pretendo colocar no livro e na exposição, mas não pretendo me limitar a elas.
No Brasil meu foco é varejo, e a estória que vou contar é sobre a rua 25 de Março, em São Paulo. Depois passo para a indústria do entretenimento, que pretendo abordar com uma estória sobre os produtores de Nollywood, a indústria de cinema nigeriana, hoje a segunda maior produtora de filmes no mundo, que funciona de forma totalmente informal, baseada nos mercados de dvds de Lagos, capital da Nigéria.
De lá passo para as telecomunicações, documentando a indústria de telefonia celular da Somália, que tem o melhor qualidade de chamada da África os preços mais baixos do mundo, isso num pais sem governo e mergulhado numa guerra civil há um quarto de século.
A estória seguinte é sobre o setor bancário, focado na howala no Afeganistão. A howala é um sistema milenar de transferência de dinheiro baseado inteiramente na confiança, o velho fio do bigode, que existe predominantemente em países muçulmanos, viabilizando a economia de países, como o Afeganistão, que não têm um sistema bancários desenvolvido ou confiável.
Por último me foco na logística, mostrando um edifício em Hong Kong que é uma espécie de 25 de Março de exportação, abastecendo de eletrônicos camelôs em boa parte da África e sudeste asiático.
A equipe do projeto, inicialmente, sou apenas eu e meu assistente, produzindo fotos, vídeos e conteúdo para o site. Mas estou aberto a entrada de mais parceiros para tocar a parte de vídeo e conteúdo. A parte fotográfica é a única que não abro mão que seja exclusivamente minha.
É projeto bastante complexo, quase criar uma empresa. Uma maneira de trabalhar bem diferente do que eu vinha fazendo até agora, muito mais planejada, estruturada. Fiz até um plano de negócios para o projeto. Espero que dê certo.
Em que estágio se encontra o projeto agora?
No momento estou tentando acabar a estória da 25 de Março e viabilizar financeiramente o projeto como um todo. Essa é a parte mais complicada e ainda não sei exatamente como fazer. Estou aplicando para bolsas, considerando a lei Rounet como forma de buscar patrocínios corporativos, buscando apoios institucionais e pensando como adequá-lo para o crowdfunding.
Outro caminho são as revistas, vendendo as estórias individualmente como matérias. Mas não é um momento muito bom para as revistas, que estão na maioria quebradas e cada vez menos publicam grandes reportagens. E as estórias são caras, ainda mais porque estou fazendo tudo em filme 6×6, o que torna o desafio ainda maior. O vídeo para mim é algo novo, uma exploração na qual anda não estou muito seguro. O projeto vai ser a minha escola de cinema. Ainda tenho muito que aprender, então é um formato que por enquanto está em segundo plano, mas pretendo mudar isso aos poucos.
A 25 está levando mais tempo pra ser concluída porque está sendo feita do meu próprio bolso, no tempo que encontro entre os trabalhos que pagam as contas, e está servindo de laboratório para aperfeiçoar o formato do projeto. Pretendo ter ela concluída até o fim de setembro. Até outubro pretendo ter um teaser em vídeo e e lançar o site. Esse ano ainda gostaria de fazer uma segunda estória, mas isso depende de conseguir o dinheiro para isso. Fora de SP não dá para sair do bolso.
O projeto é bem global e tenta se aprofundar, de forma pontual, em assuntos que afetam os locais escolhidos. Qual o elo entre estas cidades?
Na verdade o maior unificador do projeto é a questão econômica, mas todos os lugares onde o projeto será fotografado têm uma coisa em comum: são lugares frenéticos, frequentemente caóticos, as vezes brutais, mas com um dinamismo único, lugares em constante adaptação que atraem milhares de imigrantes em busca de oportunidades, ali encontradas em abundância.
Especificamente sobre a 25 de Março qual as características que você pretende abordar?
Meu foco na 25 é a rua como uma fábrica de oportunidades. As lojas instaladas ali são na maioria formalizadas (apesar de poucas operarem 100% dentro dos padrões), mas a rua abastece comerciantes e pequenos empreendedores do Brasil todo, grande parte informais. E a economia da 25 não está só nas lojas. Aquilo é um complexo “eco-sistema” econômico, com milhares de pequenos prestadores de serviço e comerciantes de rua que fazem a máquina funcionar e mantêm o interesse dos consumidores pela região.
A rua funciona 24 horas por dia, em vários turnos de negócio. A qualquer hora do dia ou da noite tem comércio acontecendo ali. A 25 é uma obra coletiva, em que as lojas são apenas uma parte da engrenagem. A região só tem o tamanho que tem por causa do conjunto, que é o que a torna única e tão atraente. E tem oportunidade pra todo mundo. O cara começa vendendo água correndo da polícia na Ladeira Porto Geral e daqui a pouco já está “pescando” comprador na rua para as lojas instaladas nos prédios, ganhando comissão por cada compra feita. Depois de um tempo já forma sociedade numa barraca de rua, depois consegue um box num dos muitos prédios que estão sendo convertidos em shopping centers de boxes. Alguns chegam a virar lojistas.
O metro quadrado na 25 é mais caro que Oscar Freire. Me impressionou a quantidade de estórias de sucesso que ouvi por ali, de gente que chegou sem nada e conquistou uma vida confortável, com casa própria, carro do ano, férias com a CVC etc. Não conheço outro lugar no Brasil onde tenha visto tanta mobilidade social. Claro, tem seus problemas, tem um lado sombrio, mas, na minha experiência, não é isso que define a rua, muito pelo contrário.
Este projeto carrega toda a sua (André Vieira) história documental e de pesquisa. Nos fale um pouco sobre essa sua busca e como você enxerga ela inserida no contexto da fotografia nacional.
Esse projeto pra mim é uma grande aposta, nunca fiz algo parecido e sei que é uma empreitada extremamente ambiciosa, talvez um passo maior que minhas pernas. Mas não havia como não tentar. Estou num ponto de minha carreira em que realmente não acredito mais em foto-jornalismo nem no jornalismo que é feito hoje. Ficou tudo muito superficial, muito imediato e descartável. Não acho que seja um meio que tenha as respostas para um mundo de hoje. Não quero ser apenas um fazedor de imagens, mas uma parte da discussão sobre os temas que me interessam. Esse projeto foi o caminho que encontrei pra tentar me colocar nesse lugar, para subir um novo degrau em minha carreira.
Pra mim não é apenas uma proposta fotográfica, mas uma tentativa de me reinventar. Não tenho mais 20 anos, não tenho mais condições de trabalhar da maneira que sempre trabalhei, totalmente independente, o tempo todo na estrada, apostando tudo em assuntos que acredito, sem muito foco e sem me preocupar se vou ganhar dinheiro suficiente ou não pra pagar as contas no fim do mês. Foi bom enquanto durou, mas agora quero outra coisa pra minha vida, uma relação mais profunda com meu trabalho, uma abordagem mais conceitual, uma busca mais intelectual. É um amadurecimento, uma outra relação não só com meu trabalho mas também comigo mesmo.
Acho difícil enxergar o meu trabalho no contexto atual da nossa fotografia. Sempre trabalhei mais pra fora do que pro Brasil e acho que o que faço e como trabalho é mais compreendido fora do que aqui. Infelizmente. Gostaria que fosse diferente, sobretudo pelo momento riquíssimo que o pais está vivendo. É uma transformação absurda em menos de duas décadas, um momento crucial de nossa história que simplesmente não está sendo documentado.
Apesar de nossa fotografia estar vivendo um momento glorioso em termos de visibilidade e aceitação no mercado de arte, acho que ela está indo num caminho equivocado. Acredito que a fotografia que estamos fazendo hoje está muito mais preocupada em dialogar com a história da arte do que com a história da fotografia, que é uma tradição sobretudo documental. Temos excelentes fotógrafos documentais, mas simplesmente não temos como ver o trabalho que eles produzem. As revistas daqui há muito não apoiam esse tipo de fotografia (se é que um dia apoiaram realmente) e o mundo institucional parece estar deslumbrado com as feiras de arte.
A maioria dos prêmios e bolsas apoiam apenas projetos conceituais. Não tenho nada contra fotografia conceitual, mas essa o mercado, as galerias e os colecionadores, podem sustentar. Já a fotografia documental de qualidade é caríssima de produzir, exige uma entrega absurda do fotógrafo, e essa o mercado não tem como bancar. Sem apoio institucional ela cada vez mais se torna inviável. E é nela que acho que temos uma tradição mais forte, apesar de nossa visão de foto-jornalismo ter feito de tudo para matar sua personalidade.
Hoje (25/08/2013) li na Folha uma matéria do Silas Marti detonando a fotografia documental sendo feita sobre o Brasil por fotógrafos estrangeiros. A acusa de só produzir clichês. Mas que visão alternativa estamos apresentando do Brasil? Nenhuma. Quem está documentando o Brasil de hoje?
A matéria cita a Noor, que reúne alguns dos melhores fotógrafos documentais em atividade hoje. Os projetos deles são viabilizados sobretudo por apoios institucionais, através de bolsas e parcerias com ONGs e fundações. Também recebem enorme acolhida em festivais e outros eventos fotográficos, o que garante visibilidade e retorno ao investimento feito nos projetos. E, quando eles vêm ao Brasil, conseguem abrir portas para fotografar em lugares que um fotógrafo brasileiro dificilmente conseguirá cruzar, pois nossos governos e empresas andam deslumbrados com a atenção estrangeira enquanto ainda vêm com extrema desconfiança fotógrafos brasileiros, sobretudo independentes. Se déssemos mais valor a nossa própria fotografia documental essa situação seria diferente.
Estamos, sobretudo as gerações mais jovens (certamente influenciados pelo que vêm sendo incensado e promovido), produzindo uma fotografia, na minha opinião, preguiçosa, covarde, sobre-estetizada. Moramos num país intenso, visceral, caótico, atravessando um momento de mudança profunda, talvez a maior transformação que vivemos em nossa história, e o que vemos em nossa fotografia atual? Parece que vivemos em Helsinqui, com uma vida plena explorando as angústias do eu contemporâneo. Com raras exceções acho bem chato o que tenho visto por aí, absolutamente desinteressante. Logo agora que a fotografia, graças ao digital, está praticamente ao alcance de todos, era para termos uma Nan Goldin, um Bruce Davidson, um Koudelka, um Mikhailov, um novo Salgado, um novo Rio Branco, fotógrafos brasileiros dissecando profundamente nossa própria realidade, fotógrafos jovens mergulhando de cabeça e sem medo nesse país em profunda transformação. Espero estar totalmente equivocado, mas não é o que tenho visto por aí. Daqui a 20, 30 anos, o que lembraremos dessa fotografia feita agora? Acho que quase nada. Já uma documentação profunda desse momento de tamanha transformação de nossa sociedade seria um documento histórico importante hoje, daqui a 20 anos e daqui a 100. Só que isso não vai acontecer se continuarmos embriagados pelo “eu interior” celebrado em paredes efêmeras regadas a vinho vagabundo. Acho que nossa fotografia está virando um grande Instagram, que pra mim é mídia social, não fotografia.
Parabéns, André pelo belo trabalho. A fotografia, desde seus primórdios, dialoga com a história da arte. Creio que este diálogo, apesar da fragmentação das informações e do nosso mundo hodierno, permanece forte. Sucesso
Belo discurso sobre a fotografia documental, concordo plenamente.
Boa sorte no projeto!