Hesitating Beauty

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Hesitating Beauty

Georgia Quintas

Livros trazem consigo aptidões a respeito de como histórias se constroem. Trazem também domínios narrativos que moldam-se às ideias e aos conceitos do que se conta. A dinâmica das imagens fotográficas transportadas para o livro revelam uma estrutura bem mais complexa do que o simples agrupamento. Se fizermos uma analogia, é como conceber ideias sem que possuam uma linguagem a seguir, deixando-as no ar, à mercê do vento para sustentá-las em sua inocência do apenas revelar-se, apresentar-se. Sem, contudo, possuírem uma base para viabilizarem-se em sua extensão poética.

Em 1979, o antropólogo Roger Bastide, escreveu que “a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual”. O que há de congruente quando considero sobre estruturas narrativas através da fotografia em livros e a lembrança que se constrói? Poderia desfiar uns tantos aspectos para argumentar, mas irei me valer de uma percepção empírica para discutir estas questões. Nesse caso, o fotolivro Hesitating Beauty, de Joshua Lutz (Schilt Publishing, 2012). Renomado e premiado artista, Lutz, que também é educador, trabalha no livro uma questão que lhe é muita cara e pessoal de determinada doença na família.

Posso dizer que a capa foi para mim desconcertante. O título envolvente foi posto justamente à frente do retrato de uma elegante mulher, bem na linha dos olhos dela. Seus lábios entreabertos parecem prontos a contar-nos algo, ou quem sabe, naturalmente soltar um pouco de ar. Já seus olhos, bom, seus olhos estão também entreabertos, contudo precisamente mais fechados que abertos. Neles, cabem toda a história que está por vir. Numa tênue postura contrária ao que costumamos esperar do retratado, o seu olhar desanda para uma reclusão. Fecha-se para a evidência, a exibição. De algum modo, ao final do livro, é possível retomar a capa com a disposição de entrar nesse olhar e imaginar pelo outro.

Publicação de design elegante e tamanho plausível para acomodá-lo na palma da mão, a delicadeza de Hesitating Beauty inicia-se pelo sorriso aberto de uma mulher e por um relato franco. Num breve texto, com tipologia saudosista das máquinas de escrever, a voz do narrador expõe motivos razoáveis que fazem o livro existir. Encontramos palavras como depressão, esquizofrenia e paranoia, na mesma medida em que outras como memória, realidade e mergulho são citadas. Tem-se então todos os elementos dolorosos da aproximação visual entre duas pessoas: o fotógrafo e o sujeito de sua retórica. Sujeito este que não apenas é representado como profundamente investigado pela suposição, por pistas, por marcas de tempos. Neste texto, digamos introdutório, o objetivo do livro é claro. Entretanto, sabemos pouco de fato sobre o que nos enredará.

Com habilidade silenciosa, Joshua Lutz aparenta conduzir um limiar documental discutível mais pelo que escreve do que pelo que mostra. A história ganha vigor pela aptidão do fotógrafo em operar narrativas em paralelo, onde cada qual demonstra interesses opostos. Não há linearidade no assunto proposto, daí provém a percepção da simultaneidade de imagens, da amplitude de configurações poéticas. Na verdade, Lutz já anunciara em seu primeiro texto do livro que iria “olhar para o arquivo familiar por indícios de compreensão”, como imaginaria “um tempo no qual passado, presente, e futuro colidissem; um lugar onde o peso daquelas memórias é mais forte do que a realidade”.

Contudo, além de imagens complexas por serem tão delicadas, refinadas e diretas, os textos possuem uma função à parte, são pequenos epílogos para o eixo discursivo do livro. Parte desta escrita, é assinada com o codinome Hesitating Beauty, e assim entramos na voz frágil, confusa e melancólica do sujeito retratado expondo suas certezas febris. Há ainda relatos (de cartas e entrevistas) que evocam a coexistência de um mundo pelo qual a doença passa a ter uma dimensão abstrata desconhecida e improvável.

O desconforto em estar próximo, mas no entanto viver em mundos perceptivos distintos é sutilmente sentido nas entrelinhas. A realidade versus a manifestação de imagens indeléveis da esquizofrenia passa a ser um jogo de atravessamento de significados. Lutz investiga o arquivo deste núcleo familiar e potencialidade a esfera do imaginário deste material. Acrescentando ao que mencionei acima por meio de Roger Bastide, trago também a ideia de forjamento para o patamar da potência fotográfica. Ao desviar da retórica clássica de enunciar um fato ocorrido, o forjamento conota características menos espessas, mais poéticas, frouxamente evidentes e significativamente instigantes. Joshua Lutz desconstrói a fotografia, e a coloca à deriva da possibilidade do que diz ser “pistas” da sua história de afeto por aquela mulher a qual se desloca pelo livro mesmo na ausência de sua imagem.

Vemos portanto um discurso biográfico-ficcional, não totalmente nesta ordem, cujo tempo, como diz Paul Ricouer, tem a propriedade da enunciação narrativa de apresentar, no próprio discurso, marcas específicas que a distinguem do enunciado das coisas narradas. Estando desse modo o tempo narrativo da ficção entre o ato de contar e as coisas contadas. Hesitanting Beauty tende a provocar nossa leitura por essas vias nem sempre claras (e não precisamos esperar que os fotolivros assim sejam) para exercitarmos a compreensão sobre tal objeto de discurso fotográfico.

Cabe ressaltar que a edição nos impõe incertezas de tempos, bem como discutem como as imagens falam para nós. Ou seja, fica uma fina sensação de que as imagens nos confundem, nos provocam por não serem apenas índices de pessoas, lugares. Enfim, de contextos que devem ser sugados para uma outra significação além da realidade, onde podemos refletir sobre o que venha ser a verdade da história materna pela experiência fictícia da trama intrínseca e particular da fotografia de Joshua Lutz. Um livro onde o questionamento do que podemos perceber indisciplina o que podemos imaginar.

* Texto originalmente publicado no site do 3º Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo, 24 de setembro de 2013.

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