Fotos: Felipe Russo
Enunciados da espacialidade, cantos de manifesto
Georgia Quintas
O trabalho “10 anos, amanhã” do fotógrafo paulista Felipe Russo se alinha ao pensamento de um dos maiores pensadores sobre o modernismo, Marshall Berman. Dentre suas reflexões, Berman expõe: “Ser moderno, é encontrar-se em um ambiente que promove aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”.
Felipe pesquisa sistematicamente seu olhar e sua relação com a cidade. Essa exploração fotográfica ocorre cartograficamente no centro de São Paulo. Célula histórica no mapa da metrópole que hoje, talvez, não se destaca em sua plena autonomia de opulência e modernismo de outrora. Para o fotógrafo, a subjetividade e a espera, o tempo alongado em idas e vindas a esses lugares são fundamentais em seu processo.
Nesse ensaio, Felipe cruza questões sobre o que restou do território de modernidade, com seus amplos e luminosos espaços, idealizados para receberem a função entrelaçada à forma. Essa identidade arquitetônica revela-se como legado tanto do passado quanto do presente que nos representa.
Em alguns momentos, os espaços construídos, arquitetados, cevados para uma função, ocupação, território de vida, ação e acontecimentos, se desmancham. Lugares que tornam-se frágeis com o tempo, como as pessoas que os preenchem. A um lugar laçamos nossas energias, transita-se pelo presente do que será passado, por um tempo que parece não precisar acomodar-se no futuro. E Felipe não tem pressa que este centro se esgote em suas imagens; ao contrário, revela em calmaria paisagens contidas no interior do vazio, da ausência. Sobretudo, no silêncio da representação que se esconde.
Perguntei a Felipe sobre a perda de função dos espaços: “A funcionalidade é uma questão fundamental da arquitetura. Temos que ser também agentes ativos desse processo, buscar soluções inventivas para dar novos sentidos a esses espaços. Por outro lado, esse momento onde o espaço se encontra destituído de função ou em um ‘desencaixe’ – onde sua forma e uso parecem não construir sentido – me fascina. Muitas vezes, penso nesses espaços como pessoas, todos passamos por momentos de desencaixe, alguns nunca se sentem completos ou tem a sensação clara de pertencimento. Nesses espaços existem uma energia de pausa onde tudo que já foi parece ter deixado marcas e uma energia latente que espera por um novo sentido. Me vejo neles também.”
A convicção poética de Felipe o faz descobrir – com a paciência dos arqueólogos – edifícios, galerias e salas comerciais plenos de enunciados de espacialidade tensionados pela energia de um tempo e seu frescor datado. Ao mesmo tempo, Felipe captura imagens abarrotadas da perspectiva de compreender o pertencimento e a funcionalidade os quais unem os lugares aos seres humanos (e vice-versa).
A influência que Felipe Russo tem na sua formação – de importantes fotógrafos como Robert Adams, Michael Schmidt, Eugène Atget e Walker Evans – sublinha a linguagem direta, de sutilezas aparentes. Ao documentar, inclusive a subjetividade, ele exercita em sua fotografia a vibração (de ar sereno) de quem enxerga o impulso velado do espaço contido no tempo. O que aparenta estar adormecido nas imagens de “10 anos, amanhã”, é fartura da vida esquecida nos vãos para aqueles que os acham, assim como Felipe Russo. Porque há sempre quem procure novos cantos de manifesto.
* Texto originalmente publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo em 23 de novembro de 2014 (http://goo.gl/7SDhhj).
muito bom