Foto: Bruno Fernandes/Divulgação
O novo IMS, a cidade e as pessoas em articulação com a fotografia.
O antigo, pequeno, intimista e charmoso IMS, situado na Rua Piauí, no bairro de Higienópolis, São Paulo, durante extensos 21 anos ficou agora envolto em memória afetiva e em lembranças expositivas importantes para o cenário das artes, fotografia e iconografia. Habitualmente, comentava-se sobre sua escala espacial diminuta em analogia ao encantamento (amplitude e beleza) do IMS do Rio de Janeiro como algo eficiente, contudo modesto. O Instituto Moreira Salles sempre foi para mim (como pesquisadora, e quando jovem aluna de História da Arte) aquele território de guarda com excelência técnica de acervos e coleções para a memória e preservação da nossa história artística e cultural brasileira. Com o olhar voltado para o campo da Literatura, Música, Cinema, Iconografia e Fotografia, o IMS tornou-se representativo por sua difusão cultural. Assim, é referência para gerações.
Mas como discerniu Walter Benjamin, talvez eu esteja experimentando um impacto entre tempo passado e o agora, entre “a latência e o fóssil” e “o instante e o relâmpago” diante do IMS Paulista. Imbuída pelo processo de relação possível, o qual o filósofo Giorgio Agamben faz eco a Benjamin, de divagar sobre as marcas que esta transição guardará, e acrescento desenhará ao futuro. Foi por essa imagem em suspensão, dialética, facetada que adentrei pela calçada expandida da nova unidade em São Paulo do Instituto. Fui ensimesmada, vestida pela “imagem entrecortada” benjaminiana.
Resolvi ir poucos dias depois da inauguração (19 de setembro), queria sentir a atmosfera deste espaço como passante, disposta a entender este novo lugar, cravado na importante e icônica avenida Paulista. Lugar de negócios, vozes, protagonismos entre poder e vida comum, mazelas do mundo contemporâneo, lugar sem teto para alguns, vias fechadas para o lazer saudável e cultural de muitos outros. Enfim, um novo aparelho (entidade civil sem fins lucrativos) que tem em seu discurso “a promoção e o desenvolvimento de programas culturais”. Como integrar o público da rua, da cidade para dentro de um espaço museológico? Como expandir seus conteúdos tão bem realizados, produzidos como já é tradição no IMS para as pessoas que talvez não passassem/acessassem o espaço discreto na bucólica rua Piauí? Pensei em qual distância se daria esse grand jeté.
A grande calçada, que esparrama-se para dentro e projeta-se para a escada rolante, possibilita que qualquer um entre no prédio sem limites. Basta subir, olhar a bela vista que se projeta na sacada, e que também ressalta o interior da edificação. Subir e descer as escadas funcionam para olhar a paisagem de fora. Era um dia de sol, o qual infiltrava-se por todos os cantos daquele lugar. Tudo engendrava sentido mesmo antes de caminhar pelas paisagens curatoriais, pelos livros, pelos sons, pelo silêncio quase imaculado da sala de leitura da biblioteca. Contudo, o espaço fazia sentido não só pelo conteúdo do que estava a ver, a assistir, a refletir sobre os trabalhos de tantos autores dispostos ali, pois minha apreensão mais vagarosa estava também em observar o público, grupo de turistas, jovens, senhoras do bairro, pessoas que estavam focados em “mergulhar” naquele belo edifício, nas galerias, nas oxigenadas áreas comuns.
Muitas eram as expectativas: abertura da tão alentada Biblioteca de Fotografia pela comunidade que se dedica à esta área de interesse; a exposição The Clock do artista Christian Marclay; Corpo a Corpo, exposição com artistas contemporâneos, que traz de forma marcante a linha curatorial trabalhada na revista de fotografia contemporânea ZUM (publicada pelo IMS); Câmera aberta, exposição de Michael Wesely; além de São Paulo: três ensaios visuais; e por fim, a importante mostra dedicada a Robert Frank, Os americanos + Os livros e os filmes. Pois bem, tudo isso cabe no novo endereço da sede na Avenida Paulista. O prédio ainda dispõe de salas de aula e cineteatro. A programação do IMS também pretende dedicar-se a ações educativas. A programação de oficinas e cursos deste segundo semestre de 2017 já foi divulgada.
Imagem do livro The Americans, de Robert Frank (1958)
ROBERT FRANK
Um dos grandes encantos da minha visita ao IMS Paulista aconteceu quando pisei na Galeria dedicada a um dos nomes lapidares e dos mais contundentes da história da fotografia, o suíço Robert Frank. Pela primeira vez integralmente no Brasil, a exposição Os americanos apresenta 83 fotografias originais do autor. Literalmente, a exposição abarca as fotografias do mítico livro The Americans, publicado em 1958 (com o título Les Américains) na França, e no ano seguinte nos Estados Unidos. O percurso do projeto, que fora elaborado e contou com o auxílio na rota daquela “expedição” do não menos relevante fotógrafo Walker Evans, e a grande viagem de Frank pelos Estados Unidos são colocados de forma profusa nesta exposição, que poderíamos reconhecê-la como definitiva, caso o futuro não venha surpreender-nos com suas voltas.
A intensidade do trabalho de Robert Frank impacta pelas filigranas na representação de um país e sua época, sua gente e suas subjetivações. A publicação Os americanos tornou-se uma cicatriz benéfica para a História da Fotografia, pois marcou em profundidade, com técnica, sensibilidade poética e objetividade do olhar, o denso contexto sócio-antropológico de um país. Robert Frank fez da alteridade o eixo do seu trabalho ao alargar a perspectiva para o cidadão comum, contra a invisibilidade do ordinário de um cotidiano de certa época e país. A dedicação de dois anos de viagens a trabalho para este projeto revelou-se em 27 mil imagens.
Com curadoria de Sergio Burgi, Samuel Titan Jr. e Gerhard Steidl, a Galeria se apresenta coesa e com bela contaminação entre os conteúdos. O espaço expositivo parece pequeno pela profusão do material, o qual revela a outra parte emblemática da Mostra, Os livros e os filmes, 1947 – 2017, projeto concebido e desenvolvido pelo próprio Robert Frank e o editor Gerhard Steidl. Quiçá didática e orgânica sejam palavras para sintetizar este “capítulo” em exposição. Todos os livros integram o espaço, seja fisicamente com possibilidade de manuseio – como as várias versões de The american – ou de modo expositivo com breves sínteses sobre cada obra publicada e respectivas fotografias. Uma verdadeira aula de livro fotográfico. Grande oportunidade de apreciar o indelével conjunto da obra deste artista. A profícua produção de filmes de Robert Frank pode ser conferida na programação de projeções do IMS, que ocorrerão em seu cineteatro.
Também observei com deleite o percurso da edição fotográfica (tão cara aos fotógrafos, editores, curadores). Uma parede repleta de contatos de negativos dá a justa medida processual das sinalizações de escolhas e ajustes, assim como das marcações com fim de indicar os caminhos para ampliação das fotografias no laboratório. Seguem pelo trajeto expográfico, mesas-vitrines com documentos e publicações originais, as quais datam a repercussão do trabalho de Robert Frank na mídia. Relíquias que trazem para o âmbito da leitura situações profissionais, as quais traduzem muito do espírito e veios reflexivos da vida e da arte deste artista. Em diálogo transcrito de Frank, em 2008, com o seu amigo e publisher da renomada editora alemã de livros de arte Steidl, Gerhard Steidl, lê-se:
– “Robert, como você imagina a edição definitiva do seu livro, o que deseja?”
– “Eu sou um simples fotógrafo – então quero um livro simples, não muito grande”.
– “Que tal se fizermos assim: vamos usar um papel revestido de alta qualidade, sem nenhum branqueador fluorescente nas páginas que contêm fotos. O mesmo papel vale para a sobre capa e as folhas de guarda. Afora isso, só precisamos de papelão de 2mm e tecido preto para a encadernação. Três materiais: papel, papelão e tecido – e só”.
E Robert Frank finaliza:
– “Está bem”.
BIBLIOTECA
Além das cinco exposições temporárias, inaugurou-se a Biblioteca de Fotografia, a qual já se estabelece como uma referência no Brasil. Para o curador, Miguel Del Castillo, talvez este centro também seja referência no âmbito de América Latina. O IMS sempre, como já foi dito, tracejou o foco da sua vocação na área dos acervos fotográficos. Importantes coleções fazem parte deste acervo em formação desde 1995.
As exposições realizadas no IMS eram arrematadas com publicações de catálogos invariavelmente esmeradas. Tais, diria, livros-catálogos eram a certeza de que a biblioteca pessoal de qualquer um teria exemplares de qualidade. Livros e outras publicações ligadas ao campo da fotografia foram produzidos pelo IMS, como a marcante obra Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro (2002), de Boris Kossoy. Em 2011, surge a revista de fotografia contemporânea ZUM, configurando olhar para a contemporaneidade da imagem. Desta maneira, integravam o acervo do IMS livros de apoio para pesquisas nas realizações das exposições, assim como de livros oriundos dos acervos adquiridos.
A Biblioteca é composta por catálogos de obras gerais, livros fotográficos – de autores nacionais e internacionais –, publicações teóricas e edições que possuem diálogo com o campo da fotografia nas áreas como artes visuais, ciências humanas, cinema, etc. A aquisição inaugural, segundo o curador Miguel Del Castillo, foi o acervo de 1.000 livros da fotógrafa e crítica de fotografia Stefania Bril (1922-1992). Outras relevantes aquisições foram as bibliotecas dos fotógrafos Thomaz Farkas, Iatã Cannabrava, Paulo Leite e Vania Toledo. Há ainda à disposição do público os livros do catálogo da editora Steidl, conhecida pela excelência em livros de arte e fotografia. Sendo esta a primeira Biblioteca Steidl do mundo.
A inauguração da Biblioteca de Fotografia foi aberta com cerca de seis mil títulos disponíveis. A catalogação segue em frente, e a estimativa é que chegue a 14 mil livros. De acordo com estimativas do IMS, a Biblioteca pode comportar 30 mil itens. A plataforma de busca online é bastante eficiente. A expectativa aumenta com a possibilidade de catalogação do acervo Fotoplus (folheteria, livros e revistas), doado pelo sistemático pesquisador Ricardo Mendes, que abarca 30 anos de dedicação. Como também será um marco a digitalização da coleção da revista Iris Foto (datada entre 1947 e 1999). Periódico fundamental para o entendimento e ampliação da História da fotografia brasileira. Quantos já não sonharam em ter o conjunto completo disponível para possíveis pesquisas, sobretudo, digitalizadas?
Destacaria a dinâmica do ambiente e a forma salutar de estar à “passear” pelos livros ao alcance das mãos. O público tem livre acesso às prateleiras. A consulta é presencial, não há procedimento de empréstimo. Também não é preciso se identificar. Apenas escolhe-se o livro que queira e depois é só colocá-lo no carro de reposição, que fica bem visível. Prático, eficiente, sem balcões e burocracias. As obras raras (estas ficam guardadas) podem ser solicitadas aos bibliotecários. Foi uma experiência muito gratificante observar que não apenas pesquisadores estudantes e profissionais da área de fotografia estavam ali a conhecer, apreender algo tão universal quanto encantar-se pela imagem. Assinaturas de revistas especializadas estão bem acessíveis ao manuseio. A Biblioteca se faz oásis silencioso, ambiente agradável, eficiente acessibilidade e consulta presencial sem maneirismos com o público.
Gostaria de destacar a sutileza das folhas colocadas na estante com a bibliografia respectiva a alguns dos artistas presentes nas exposições atuais do IMS Paulista. Um detalhe cuidadoso do curador Miguel Del Castillo. Com esse facilitador, é possível conhecer catálogos e livros autorais referentes aos artistas em questão. Nessa linha de trazer algo orgânico ao público, senti uma atmosfera intimista neste espaço, salta aos olhos a exposição São Paulo: no livro fotográfico: 1954-2017. Os dez títulos expostos e disponíveis ao manuseio do público alinham-se pelo passado até a contemporaneidade de forma reflexiva. Dentre os títulos raros, cabe ressaltar Rua (1961), do poeta Guilherme de Almeida e do fotoclubista Eduardo Ayrosa. Exposição generosa, a qual permite que o público aprecie grandes e históricas obras, raras vezes encontradas para consulta. Saí com a alma leve, almejando passar tardes a ver a metrópole pelos vidros, o silêncio abafado por estes e a leveza daquela sala de leitura.
Videoinstalação The Clock, de Christian Marclay
EXPOSIÇÕES
A longa porém não menos sedutora obra de Christian Marclay, The Clock (2010), poderia de fato manter-nos confortáveis nos sofás dispostos na sala de projeção durante 24 horas, duração da videoinstalação. Podemos considerar uma obra contundente para o debate sobre o tempo, imagens afetivas e construção imaginária a respeito da finitude. The Clock narra, de modo fragmentado, através da edição de trechos de cenas do cinema e da televisão a passagem do tempo pela presença do relógio. As 24 horas de duração são sincronizadas com o tempo real do espectador. Não há começo, meio e fim; não há roteiro ou curva dramática; há ícones e lembranças visuais; há o tempo dentro do tempo, a metaliguagem que ratifica as claves do tempo contínuo e simultâneo, do tempo vivido e do tempo forjado. Haverá nove sessões da projeção de 24 horas ininterruptamente. No mais, a videoinstalação segue o horário de funcionamento do IMS. Destaco o encarte distribuído gratuitamente nessa exposição, com a entrevista pontual de Heloisa Espada a Christian Marclay e o belo texto de Zadie Smith (originalmente publicado em The New York Review of Books, 2011).
Em outra Galeria, assim foram nominados os espaços expositivos, está a exposição Corpo a Corpo: a disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo, com curadoria de Thyago Nogueira. O fluxo imersivo no ambiente escuro de “cinema” fora rompido nessa galeria, as imagens em profusão também estão lá. Não obstante, esta exposição é permeada por dada narrativa curatorial muito próxima de quem acompanha a revista contemporânea de fotografia ZUM. Foram convidados e comissionados a realizar trabalhos inéditos para a exposição os artistas Bárbara Wagner, Letícia Ramos, Sofia Borges, Coletivo Garapa, Jonathas de Andrade e Mídia Ninja. O Coletivo Garapa, é exceção com relação aos trabalhos inéditos, integra a exposição com o trabalho Postais para Charles Lynch (2015), realizado a partir da Bolsa ZUM/IMS daquele ano.
A exposição coletiva se adequa bem ao espaço e a expografia delimita os trabalhos de maneira entremeada pelos monitores da videoinstalação da Mídia Ninja. O espaço torna-se uma rede de diálogos, contaminados por meio da linha central pensada pelo curador ao enfatizar que “o corpo pode ser usado como instrumento de representação social e política”. Por este viés, é possível perceber pesquisas com afinidades como a de Bárbara Wagner (À procura do 5º elemento) e Jonathas de Andrade (Eu, mestiço) ao investigarem sociologia e antropologia em perspectivas particulares. Jonathas como sempre nos traz certo refinamento em suas estruturas conceituais, referências relevantes para o seu olhar crítico e idiossincrasias estéticas, as quais seduzem o observador pela ocupação literal do espaço.
Infelizmente, não foi possível assistir ao vídeo Terremoto santo, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. A sala de projeção, por motivos técnicos tornou-se uma “sauna”, sendo insuportável a permanência. Letícia Ramos e Sofia Borges materializam o simbólico e o abstrato das relações e tensões políticas vivenciadas nos últimos tempos. Mídia Ninja denota seu teor de guerrilha por meio da profusão dos acontecimentos, da urgência da hora, e assim constrói camadas e acúmulos de sons ao espaço expositivo. O livro exposto do Coletivo Garapa parece reverberar o próprio espaço sonoro que se estabelece a partir desses monitores. A pesquisa revelada no objeto-livro merece tempo e leitura mais íntima, vale sentar e dar conta com tempo vagaroso aos Postais…
Nas outras Galerias, estão as interessantes e contextuais exposições Câmera aberta, de Michael Wesely e São Paulo: três ensaios. Ambas revelam a temporalidade em seu ato contínuo de transformação da paisagem urbana, seja diante da pululante Avenida Paulista, seja das mais diversas perspectivas da cidade de São Paulo. Como diz, Guilherme Wisnik, curador da exposição São Paulo…, “o que se ensaia, aqui, é uma arqueologia dessa cidade imensa e inapreensível, pujante e violenta”. Wisnik adensou sua pesquisa curatorial através do acervo fotográfico do IMS. Lá encontramos Alice Bril, Claudia Andujar, Cristiano Mascaro, Edu Simões, Hildegard Rosenthal, Jorge Bodansky, Marc Ferrez, Raul Garcez, Tatewaki Nio, Tuca Vieira, Thomaz Farkas, entre outros relevantes fotógrafos, os quais compuseram o desenho imaginário e concreto das singularidades urbanas e antropológicas da cidade de São Paulo.
Ecoou-me a frase de Robert Frank, em destaque em sua exposição: “Sempre achei que o modo como se vive já é em si uma atitude política”. Estendo aos espaços culturais esta reflexão. Minha experiência no IMS Paulista fora de fato acolhedora. Contudo, ficarei a exercitar a ideia de que um Instituto com esta qualidade seja um espaço político de circulação da arte sem fronteiras e melindres com seu público. Um lugar no qual qualquer um entre circule e saia pensando em algo, ampliando o conhecimento…
Georgia Quintas.
* Texto originalmente publicado no site da revista Continente em 04 de outubro de 2017. Link, aqui.