Venoso
Não era noite, nem dia. Parecia ser apenas o sol a banhar os pés.
Chegara tarde e diria que era o leito a secar
ou a forma dele a atravessar o silêncio.
Não havia assombração, eram somente
vultos a compadecer das sombras.
O corpo aviltava afetar o silêncio, desfrutar dos ruídos.
Ele disse: os olhos são de porcelana,
mas o horizonte estampa nele
a relva, o bosque, o afeto e a resistência.
Era salva, lamiáceas a juntar contas.
Rosário de palavras a espantar a poeira que não servia,
que não possuía lugar para aquele presente.
Não havia o que lembrar, haveria de se viver.
Para abafar o impacto da flecha, era preciso reforçar o gesso,
repintar os olhos de porcelana, deixar as veias escondidas,
acanhar o impacto para o pó do gesso não denunciar.
Caso fosse preciso, diria que devia de ser traço
da clareira de nuvens depois da tempestade.
Era preciso esconder ainda as asas.
A roupa suada. O aroma sutil de alfazema vinda do mundo.
A chuva limpara o pó, a lágrima era resto d’alma lavada.
Era tudo demasiado, tudo afago de esperança.
Repousar era fenecer.
Desfazer o horizonte devia ser mais que desejo.
Pensei em desolação ao desconfiar que o olhar e as palavras
lutavam para se achar na paisagem.
As asas escondidas ajudavam a experimentar
coisas vistas pelo tempo.
Lançavam ventos de imagens vividas.
As imagens, essas, nomearam um tempo raro,
um tempo de resistir para ver,
de fazer do verso da vida alamedas amplas de histórias.
Chegar até aqui para desmantelar o tempo
ao enxergar a poeira que um dia existira.
E sentir por imagens a força venosa da memória.
Tentando imaginar as lufadas das asas espantando poeira.
Georgia Quintas.
São Paulo, Quarta-feira de Cinzas, Fevereiro, 2016.
* Texto publicado no fotolivro 1978, de Gabriela Oliveira.