Mariana Tassinari
Beleza enevoada de magenta e ciano
“Os lugares perdidos se transformam em
espaços de ficção oferecidos ao duelo e ao acolhimento de um passado”.
Michel de Certeau
A paisagem é daquelas certezas imediatas de que as coisas são como são. Registrada pela fotografia, a certeza sedutora do que vemos assim encapsula a memória para a direção reta com o reencontro do vivido. Quando trata-se de paisagens de viagens, as imagens ganham contornos ainda mais fortes; linhas espessas da experiência por lugares e contextos transformam-se em territórios rizomáticos, cujas possibilidades prolongam-se além do visto, do que encanta aos olhos. A experiência pela paisagem, por sua estética, modula-se em falsete, por fábula movediça para o espírito, uma ponte para o lugar do olhar – do qual o sujeito busca compreender sua existência na latitude do tempo, da memória e do espaço.
O fenômeno do encontro com a fotografia de outro, de um arquivo familiar, das viagens de uma vida é o esteio de Sobretempo, pesquisa e obra de Mariana Tassinari. É através dele que o pensamento sobre a percepção do sensível mergulha em sutilezas, filigranas bem torneadas por imaginários estéticos e afetivos. Sobretempo faz o cálculo pelo recorte. Pela colagem, constrói a percepção harmoniosa, contudo também paradoxal do que se pode, deseja e precisa-se partir, romper, para então fruir a narrativa de atravessamento entre a artista e o arquivo familiar de viagens do seu avô paterno.
Sobretempo caminha pelos rizomas tortuosos do sentir a liberdade subjetiva dos espaços na percepção da paisagem. De modo suave e elegante, por atmosfera com cheiro de passado, com tons de tempos sovados, a inconcretude da memória se expande em contaminação pela metalinguagem que a artista explora. O traço particular de Mariana Tassinari e suas camadas já conhecidas de outros trabalhos, alinham-se em Sobretempo com precisão monástica, em quase ato de meditação. De tal forma, traz para a superfície imagética imperceptíveis fraturas, hiatos, junções domesticadas em contundente fluxo poético-ficcional. As imagens passam a contaminar-se entre sim pela vã e dócil ilusão de que sejam tão onipresentes, sobretudo inexoráveis em seus cenários, cenas e horizontes (apreendidos pelas marcas/limites inaugurais da composição).
O risco alimentou a beleza da memória enevoada de magenta e ciano; restaurou o tempo, sob a subjetividade imprudente e suave da paisagem. Foi além, contudo, ao romper com o estado letárgico da contemplação. Porque a paisagem pode ser o risco do encanto ou do penhasco, do desterro ou do lugar perfeito, ou mesmo a sensação falsa e tão reconfortante em explorarmos a nossa complexidade de sentir e perceber o mundo, seja por espaços de afetos, devaneios e poesia. Assim como esperamos ser invadidos pelo mundo.
Georgia Quintas, escritora e antropóloga.
* Texto para exposição “Sobretempo” da artista Mariana Tassinari. Mariana é autora do fotolivro de mesmo nome publicado pela editora Olhavê.