
Foto: Georgia Quintas — Claudia Andujar em seu apartamento, 28/07/2010
« Entrevista originalmente publicada em 18/10/2010 no Fórum Virtual, site do 2º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo, realizado pelo Itaú Cultural. O Fórum Virtual está fora do ar »
Nada do que tinha planejado iria adiante
Georgia Quintas, 28/07/2010
Durante os poucos segundos, dentro do elevador, que me levaram até aquela mulher, sequer imaginei que o que fosse guiar esta entrevista fosse a doçura e a força. A porta do elevador se abriu e de pronto comecei a escutá-la pela porta entreaberta. Gesticulou para que eu entrasse. Literalmente, sai da penumbra do hall de entrada para a absoluta claridade e aconchego da moradia da minha entrevistada. Foi quando percebi que nada do que tinha planejado iria adiante…
O “rasgo” do janelão aproximava o horizonte de São Paulo daquela sala, daquele sofá onde me sentei a esperá-la. A voz doce e pausada ao telefone acompanhava meu olhar pelas paredes à procura de imagens. Poucas, porém lindas, lá estavam as marcas de uma vida dedicada a amar os Yanomami através da fotografia. Fim da ligação. Ela se aproxima e me cumprimenta. Nesse momento, me escapa: “Como você é linda…” Coisa de quem admira a obra que representa uma das mais belas e importantes histórias da fotografia brasileira.
Esta doce mulher, para quem sem cerimônia, quase que involuntariamente, a chamei de linda, é a fotógrafa Claudia Andujar (1931).
Sentamos e após as primeiras perguntas, Claudia chegou a sugerir em sua fala que talvez fosse a pessoa errada para responder tais questões. Diante desta humildade, tomei consciência que deveríamos falar do que ela gostasse de fazer, das coisas que ela ama e que continua lhe dando prazer em seu percurso profissional.
Intervalo do Encontro
A fotógrafa suíça Claudia Andujar chegou ao Brasil em 1955. Seu percurso de estrangeira se inicia nos treze primeiros anos de sua vida, quando morou na Hungria e Romênia. Chega ao Brasil, depois de viver nos Estados Unidos. Após essas várias moradas, Andujar naturalizou-se brasileira em 1975.
Quando chegou ao Brasil, Claudia já possuía uma relação com as artes plásticas. Mas, foi aqui no Brasil, a partir de uma inclinação em aproximar-se das pessoas, de encontro e conhecimento sobre novas culturas que aconteceu o seu interesse e prática fotográfica. Os primeiros trabalhos foram pautados por escolhas e vontades próprias, depois veio o fotojornalismo e sua inserção editorial.
Durante cerca de cinco anos, trabalhou como freelancer para a Editora Abril. Foi exatamente por conta de uma pauta para a revista Realidade (1971), que inclusive foi sua última capa para a revista, que a vida e a fotografia de Claudia Andujar se transformaram. Passou a amar e respeitar intensamente os Yanomami, população indígena – a qual vive no território fronteiriço entre Brasil e Venezuela. A fotografia fez com que Claudia enxergasse a dignidade desse grupo social, a convertendo em grande personalidade de articulação pelas causas territoriais, de saúde pública e de luta pela preservação dos Yanomami.
Volta à sala de estar
Os livros de Claudia são preciosidades no sentido estrito. Importantes em seu conteúdo e qualidade de linguagem fotográfica, alguns deles são peças raras e disputadas pelos sebos virtuais. Os mais recentes Vulnerabilidade do Ser (Cosac Naify, 2005) e Marcados (Cosac Naif, 2009) são livros referenciais para a compreensão de sua obra. No entanto, a bibliografia de Andujar é mais extensa e denota sua dedicação em publicar.
– Como é fazer um livro de fotografia? O recorte, a edição, enfim a escolha gera angústia?, pergunto.
– Eu gosto de fazer, é um alívio. Cada livro, de certa maneira, é uma história. Na verdade, escolho um tema antes de pensar que vai se tornar um livro. Com os Yanomami (Yanomami em frente do Eterno, Práxis, 1978) decidi mostrar de certa maneira uma representação da humanidade deles. Dividi em tópicos a edição com o começo da vida no planeta, o nascimento do ser humano, da cultura, a contracultura, as invasões, reações e, por fim, o líder que vai em frente, mas que não sabe onde vai chegar. Eu gosto de fazer isso (livros). Para mim, cada livro é um filho.


O Primeiro
A Week in Bico´s World: Brazil. Photographs by Claudia Andujar. Text by Seymour Reit. USA: Book Crowell-Collier Press, 1970.
Este foi o primeiro livro com fotos suas. Através de uma agência dos Estados Unidos, solicitaram à Claudia um ensaio sobre a vida de uma criança no Brasil. Não teve dúvidas, avançou em suas pesquisas fotográficas com os caiçaras (comunidade da região litorânea de São Paulo, com raízes indígenas e portuguesas). “Não era o que interessava para um livro didático. Era muito exótico para as escolas. Daí me pautaram para fazer o registro da vida urbana de uma criança em São Paulo”, explica Claudia.
Pois bem, Bico passou a ser o tal menino com cotidiano em uma grande cidade do Brasil. O menino Bico, era filho do seu amigo, o também fotógrafo Otto Stupakoff (1935-2009).
Fotojornalismo
“Já havia feito trabalhos para revistas fora do país, daí comecei na revista Claudia, da Editora Abril. Como já havia feito o material da vida dos caiçaras, a partir disso comecei a me interessar por fotografar famílias com essa ideia de construir um Brasil através de famílias. A família com o contexto do lugar. Fiz a família urbana de São Paulo, a família conservadora e religiosa em Diamantina e os grandes fazendeiros de cacau na Bahia. Ao final, mostrei o trabalho. Disseram que não podiam publicar porque a revista Claudia era ligada à classe média e não era o caso.”
A revista Realidade foi especial, com pessoas especiais e espaço para trabalhar com tempo e profundidade, segundo Claudia. “Trabalhar lá foi um sonho”. Foi na Realidade, em 1967, que a edição especial sobre mulher foi censurada. A reportagem: o parto de uma criança. Regime militar e igreja se incomodaram. E, sob ação judicial, a edição (que se tornou raridade de colecionador) foi retirada de circulação.
Os Yanomami
O começo da vida profissional de Claudia Andujar já se confundia com seu caráter humanitário de trazer as pessoas e suas identidades para o registro fotográfico. Mesmo sendo enfática e esclarecendo que: “Não sou antropóloga, sou fotógrafa. Não fiz isso como antropóloga. Só entendo uma cultura tão distinta da minha quando eu consigo fotografar”. Ainda assim, o seu olhar possui o substrato da alma antropológica, isto é, a alteridade.
Diria até mais, que o desejo em conhecer em profundidade o outro através da convivência também alinha-se a essa perspectiva antropológica. Nesse sentido, o trabalho de Claudia Andujar sobre os Yanomami pode não ter sido motivado pela disciplina antropológica, mas nos põe ao lado de delicadas questões sobre a realidade cultural e sua situação social.
Os livros dedicados à temática indígena, são verdadeiras ontologias. Em tais publicações transparecem cerca de 30 anos de convívio, respeito e doação por esse grupo indígena. Com delicadeza, apreendeu a magia de ritos e aspectos sagrados. A estética fantástica de parte de sua produção traduz a luz, a água e os significados divinos daquela cultura. Imagens impressionantes.
A intensidade dessa relação de afeto e cuidado transparece de duas maneiras quando me diz:
– Nunca publiquei nada dos dois primeiros anos que convivi com os Yanomami. Até hoje, isto está guardado. Tenho as fotos, mas eu não uso. Porque acho que não representam a alma deles. Eu sempre busquei a alma deles. No fundo, era sempre o que eu buscava. Como eles merecem…
A outra passagem é quando Claudia, praticamente, parou de fotografar para se dedicar à causa indígena com a elaboração da comissão pela criação do parque Yanomami (1992) e como coordenadora da campanha contra a invasão da terra Yanomami pelo garimpo de ouro, entre outras ações.



George Love
Claudia foi casada com o fotógrafo norte-americano George Love até 1975. Junto a ele respirou fotografia. Diante da minha possibilidade de pegar nos raros livros de autoria de Love, Claudia com carinho foi buscá-los. “Não os dou porque só tenho esses”, disse diante da minha alegria em conhecê-los.
George Love (1937-1995) foi um grande fotógrafo.
“Era uma pessoa genial, se deu muito bem no Brasil”, fala como se recordasse mais do que imaginava para aquela ocasião. A parceria com Love pode ser vista no livro Amazônia (Práxis, 1978). Também foi com ele que ministrou no MASP (Museu de Arte de São Paulo) um curso de fotografia. “Eu gostava de dar aula. Durou mais ou menos um ano. Dávamos aulas teóricas sobre linguagem fotográfica, pesquisava e levava para os alunos trabalhos de fotógrafos. Para mostrar como é importante pesquisar um tema para fotografar”, relembrou Claudia. Entre os alunos nomes como Cristiano Mascaro e Claudio Edinger.
Talentoso editor, George Love foi o responsável pela extraordinária Revista de Fotografia (apenas doze edições no ano 1971). Segundo Claudia, a publicação coincidiu com a saída de um grupo de profissionais da Realidade, incluindo ela e George Love. Segundo ela, ele era bom nisso e, muito por influência dele, embarcaram nesta empreitada em fazer uma revista de fotografia. Veja aqui ensaio de Claudia na Revista de Fotografia, junho de 1971.
Arquivos
Há cerca de sete anos, Andujar faz o caminho da pesquisa por suas imagens. Ao perguntar como era a dinâmica e a sensação de mexer em seus arquivos, de ver as fotografias decantadas pela função de sua origem, assim como aconteceu com Marcados (2009), Claudia de modo incisivo falou: “Faço muito isso. O acervo tem várias vidas. É incrível rever e encontrar coisas novas”.
Este ano, a fotógrafa participou da exposição La Revanche de L’Archive Photographique, em Genebra, com curadoria do suíço Joerg Bader. O trabalho de Claudia foi justamente aquele do ensaio das famílias brasileiras que, na década de 1960, não teve chance de publicação.
Um trabalho que teremos a oportunidade de ver em exposição a ser realizada na Galeria Vermelho, talvez ainda este ano. Para ela, “mostrar e fazer exposições tem sido um processo de vontade em fugir dos padrões tradicionais. Tenho observado a fotografia contemporânea e, isso me interessa muito, em sua maneira de se expor”. A vivacidade do olhar de Claudia alinhava seu acervo à profusão de como apresentar a fotografia materialmente num espaço expositivo.
O diálogo chega ao fim
Coloco para ela que a sua fotografia sugere uma troca simbólica de amor.
– “Sim, não tem dúvida, a fotografia nasce desse ato de amor”, finaliza a sábia fotógrafa.
Deixo a amável Claudia Andujar, na claridade daquele apartamento, após uma hora de conversa. De volta à realidade, no táxi, ficou a saudade.
A fotografia, além das imagens, ainda permite coisas desse tipo: encontrar a doçura e a generosidade nas pessoas.



“Porque acho que não representam a alma deles”. Mostra o mergulho para entender de que forma a linguagem fotografica atingiria este objetivo.