Foto: Alexandre Belém – A imagem de dentro, 2008
Nem sempre o que acreditamos ser uma simples questão de aparência e vaidade, é algo tão superficial ou frívolo. É certo que, atualmente, com este mundo acachapante das celebridades, não é difícil considerar que o registro fotográfico tornou a individualização da pessoa retratada tão banal que vemos, gradativamente, a construção da imagem de um indivíduo-objeto. E o que vem à mente é apenas vaidade, vaidade, pura vaidade. Estabelece-se assim, a necessidade da aparência de alguns que alimentam a curiosidade de outros. E nada preenche nada. A imagem passa a ter um silêncio, um vazio, apenas a performance rasa de um “eu” sem nenhum significado. E tudo se torna descartável através de um apelo efêmero, através de instantes (consentidos ou não) de fragmentos da vida plasmada como espetáculo.
Entretanto, a percepção sobre o outro é uma troca social, um mundo simbólico que remete a valores culturais entre quem é retratado e quem o observa. Paralelamente aos novos caminhos que a fotografia contemporânea traça esteticamente e conceitualmente, a natureza primária de identidade inerente à fotografia ainda sobrevive em seu status de registro social de determinada sociedade e época. Podemos dizer que a fotografia é um suporte hegemônico, desde seu advento no século XIX, no qual as pessoas se tornam atores sociais, legitimam sua estratificação econômica, demonstram suas relações de poder e delimitam seu espaço de representatividade na sociedade.
Durante uma semana, me detive em analisar as fotografias das colunas sociais dos jornais locais. E o que poderia ser apenas uma percepção de retratos corriqueiras em eventos sociais, não se esgotou no conceito de que muitos – inevitavelmente com certo ranço e algum preconceito –, consideram de autopromoção ou exibicionismo. Na verdade, é inexorável o propósito de tais imagens em tornar algo público e visível. A aparência é tangível, agrega símbolos de status, muitas vezes indicados na maneira de vestir-se, ao usar jóias ou mesmo ao estar em um ambiente que denote o seu prestígio e sua capacidade de transitar em lugares seletos, refinados, enfim distintos dos “lugares-comuns”.
No entanto, a coluna social representa um segmento jornalístico que efetivamente tem um papel importante e catalisador das convenções e pautas sociais. Nesse sentido, o registro fotográfico nos leva ao passado, revela caminhos já explorados que só nos afirmam a certeza de quem somos. E assim, ao observar imagens de mulheres elegantes, sofisticadas e de homens, por sua vez, sublinhando algum contexto econômico ou de negócios, encontrei sobrenomes que se repetiam nas respectivas colunas. Sobrenomes, neste caso, têm uma carga simbólica representativa sobre o que a fotografia pode nos oferecer enquanto palco de representação da vida social.
O que ocorre no colunismo social é apenas um reflexo (e aqui, não discuto a importância e o mérito deste segmento jornalístico) da relação intrincada entre fotografia e sociedade. Temos que partir do princípio que nada é tão superficial que margeia o sentido da ingenuidade. A história da fotografia atesta que a sociedade utiliza o registro fotográfico como um mecanismo efetivo de comunicação, de modo que os indivíduos se apropriam da imagem e criam seu repertório estético para transmitir suas “intenções” e seus “desejos” ante os outros. Tudo é um palco, uma encenação da realidade, uma metalinguagem da vida pela perspectiva da idealização. Parece um pouco confuso e dúbio, mas assim é a imagem. Não tão real, não tão sincera. Um pouco manipulada, passível de várias leituras e algumas relativizações.
Sobre a fotografia como documento social, a autora e fotógrafa alemã Gisèle Freund, enfatiza que a imagem fotográfica possui a amplitude de expressar as necessidades das classes sociais dominantes e de interpretar à sua maneira os acontecimentos da vida social. Mas ela, sobretudo, expõe o ponto nevrálgico da ontologia – seja de que tipo for o retrato –, da imagem fotográfica, e nos pilha: a imagem responde à necessidade cada vez mais urgente no homem de dar uma expressão a sua individualidade.
Diria que o fluxo das imagens traz os resquícios da sociedade aristocrática da cana-de-açúcar de Pernambuco. Numa espécie de sopro, sentimos a atmosfera das elites… Nas legendas, se constata a procissão de nomes de famílias tradicionais de uma época que nos remonta facilmente à formação de nossa identidade agrária – tão cheia de contrastes sociais e de relações interétnicas. Tal contexto nos remete a fotografia do século XIX, especialmente os retratos de família. A reunião de imagens fotográficas, produzidas naquela época e ordenadas em preciosos álbuns, era o “livro” consentido da história de cada núcleo familiar. Neles, povoavam personagens que nasciam, cresciam, casavam-se, viajavam, iam à guerra, tornavam-se republicanos, abolicionistas ou conservadores. Ainda através dos retratos, cultuavam-se seus mortos, celebravam grandes datas (casamentos, batismos, primeira comunhão), enfim coisas da vida, ritos de todos nós. Nestas imagens antigas, se compreende que a técnica fotográfica estava a serviço da elite agrária. A fotografia, não tão popular por fatores econômicos ao consumo de classes sociais mais pobres, se converteu na vitrine desejada de legitimação da posição social daquele grupo cujo poder, riqueza e prestígio tinha sua própria ideologia. Desse modo, o visitante ao entrar na sala de uma casa-grande ou de um sobrado encontrava o tal álbum de fotografias para “casualmente” conhecer quem eram os retratados e, claro, de acordo, como queriam ser reconhecidos em todo seu esplendor e riqueza.
Através do jornal, ainda somos personagens desta realidade imagética da vida social que se descortina diariamente. Representamos o objetivo final daqueles mesmos álbuns de família, somos o alvo. Acompanhamos aniversários, casamentos, fatos marcantes da vida de pessoas que não conhecemos, mas que pelo hábito da leitura e do olhar, já as reconhecemos devido à freqüência com que vemos seus retratos. Ainda somos os receptores, os observadores tão desejados para que tais fotos tenham algum sentido. O certo é que se trata de um espaço no qual uma parte da sociedade é documentada, o que coloca a fotografia como instrumento de percepção e interpretação para o leitor. Desta maneira, dependendo de como você encare o colunismo social ele poderá ter duas perspectivas. Uma primeira, espécie de vitrine, da qual muitos alimentam a pueril curiosidade de quem é visto e de quem vê. Ou então, tentar transcender o banal das aparências, buscar razões e refletir sobre os significados sociais que produz o que vemos. E vale repensar no que disse na primeira frase deste texto; agora, ela poderá fazer algum sentido. Ou seja, resta escolher qual das imagens pode nos “alimentar”: a de dentro ou a de fora… E assim, perceber um pouco de nossa alma, nossa história e nossa identidade.
* Publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural em janeiro de 2008.