Foto: J. J. Oliveira – Domingos Ramos de Andrade Lima e família – Recife, c.1890-1899
Poucos pensam sobre isso, mas a fotografia é tácita na vida de todos. Em nossas lembranças mais longínquas, em nossas histórias familiares e na formação da memória. A imagem fotográfica restitui narrativas emocionais, contempla a atmosfera de tempos passados e nos envolve em sua complacência de guardar o efêmero da vida para futuros enternecidos observadores. As sensações resultantes ante um documento fotográfico nos remetem a uma realidade a ser examinada delicadamente. Nesse sentido, não é a razão que rege o interesse pela fotografia. E sim, a sensibilidade do instinto que direciona o olhar.
Através da produção de corriqueiros registros fotográficos familiares, alguns dos status mais importantes que a fotografia possui se refletem, ou seja: de papel cultural e de preservação da memória. De modo que será nos álbuns das famílias contemporâneas que gerações futuras conhecerão valores, costumes e símbolos sociais de determinada sociedade e seu contexto cultural.
O registro visual da vida privada – a princípio, fonte de interesse apenas do núcleo familiar retratado – é um valioso material iconográfico que cada um de nós constrói inconscientemente e que configura a nossa memória social. Assim, a fotografia, enquanto fonte primária de investigação, nos revela sua profícua e ampla latitude de significados e representações. Digamos que se trata da alteridade por excelência. Conhecer o outro retratado (seja qual for o indivíduo em foco) não é somente tentarmos apreender o passado, mas, sobretudo, vislumbrarmos traços que ajudem a entender a nós mesmos, nossa identidade e as sutilezas de como nos apresentávamos ao mundo (plasmada em representações e idealizações de outrora).
Particularmente, a linguagem fotográfica sempre esteve no centro de minhas pesquisas, enquanto fonte de memória, significados sociais e suporte de poéticas visuais. Graças ao legado dos retratos de família, durante alguns anos, meu “olhar” esteve dedicado a fotografias da aristocracia canavieira de Pernambuco do século XIX e princípios do XX. Após debruçar-me para fazer um mapeamento minucioso no acervo da Coleção Francisco Rodrigues, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), informações visuais significativas foram analisadas, decifradas e decodificadas com o objetivo de recompor, como alguns autores denominam, a “civilização do açúcar” – período fundamental na formação da identidade brasileira.
Discutir, refletir e apreender a sintaxe da imagem faz parte de minha trajetória nesta busca mágica de compreender os sentidos que o ato fotográfico deflagra. E assim neste caminho, resultou a tese de Doutorado “Imágenes del Pasado: Un Análisis Interpretativo desde la Perspectiva de la Antropología Visual. Los retratos de la sociedad agraria aristocrática de Pernambuco”, que defendi na Universidade de Salamanca (Espanha).
A partir de uma análise sócio-cultural da iconografia pesquisada, remontei narrativas simbólicas e pautas sociais determinantes para a aristocracia canavieira. De maneira que abordei as representações visuais e conseqüentemente seus valores sociais – verdadeiros índices, quanto a questões de parentesco, gênero, cânones morais, religiosidade, costumes e relações interétnicas. Entretanto, ao discutir sobre identidade (algo indelével aos retratos), se observa a alteridade entre dominantes (senhores de engenho) e dominados (escravos); de como se constrói a imagem do outro e portanto como os paradigmas estéticos são elaborados enquanto mecanismo de distinção social, como também expressão de poder e ideologia.
A consciência de preservar estas imagens do passado, através do empenho em colecionar retratos de famílias da sociedade canavieira, deve ser creditada ao dentista pernambucano Augusto Rodrigues, que em 1927 iniciou seu acervo. Já o seu filho, o também dentista Francisco Rodrigues, foi o responsável em continuar o sonho paterno. Neste ponto, voltamos ao raciocínio anterior: somos nós que produzimos a memória social de determinada sociedade e época. E aos que têm a devoção de colecionar, ou mesmo, de guardar fotografias, devemos a existência desta memória visual, sem a qual não teríamos surpreendente patrimônio e a possibilidade de retomá-la em nossos tempos.
* Publicado no Jornal do Commercio em 20 de janeiro de 2008.