O pensar fotográfico

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caixa de sapato : shoebox from ciadefoto on Vimeo.

Fotografar é um processo, um exercício do olhar e, inevitavelmente, da mente. Um dos grandes nomes da fotografia do século XX, Minor White, já mencionava sobre “a consciência da câmera”. Captar uma imagem – através da câmera fotográfica – não se trata apenas de pressionar um botão, mas sim de investigar, sobretudo, o processo desta linguagem. O despertar para esta questão é perceber que as possibilidades técnicas podem conotar uma temática, estilo e idiossincrasia autorais. Durante a 2ª Semana de Fotografia do Recife, ouvir quem faz a fotografia foi uma oportunidade preciosa para refletir sobre este tema tão caro à fotografia: a filosofia fotográfica.

Ou seja: o que pensar do ato fotográfico? A fotografia sofre de um determinismo ontológico pela sua relação com a realidade, do que se vê e do que nos cerca em nosso contexto de vida. Mas a imagem fotográfica ocorre muito antes do registro. Ela não é apenas o que vemos de visível, para muitos ela terá sua força, magia (como queiram adequá-la nesse âmbito metafórico) exatamente no invisível. Nas possíveis representações que transcendem os limites do enquadramento. A idéia de mimetismo inerente ao resultado fotografado reduz nossa percepção visual e pode certamente aniquilar o nosso olhar – em toda sua dimensão crítica, intuitiva e simbólica. A reflexão sobre isso é algo vital para quem se interessa em pensar a fotografia.

Em algumas palestras a temática sobre coletivos fotográficos foi recorrente, no entanto, precisamente com o coletivo paulista Cia de Foto, algo mais filosófico foi posto em debate: refletir e tentar vislumbrar caminhos para ressignificar o próprio ato fotográfico. E aí reside a grande questão: o tempo. Não o instante clássico do registro documental, da temporalidade linear que parece se colocar incólume na linha do tempo. O tempo distendido que pode ser o meu, o seu, ter várias narrativas e sentidos. Um tempo que guarda, projeta, auto-representa, instiga ou se esvazia. Que revela a passagem, o fluxo até estender-se em seqüências imaginárias.

Adequar a linguagem fotográfica à idéia e à perspectiva visual é ponto axial da criação. Há de se descobrir e redescobrir, refletir, questionar, errar, reformular, tentar, duvidar… Enfim, buscar a compreensão do que se faz ou como discorreu a Cia de Foto, simplificar o método, encontrar uma fórmula que se desconhece de apropriação fotográfica da vida que nos cerca.

Outro ponto relevante e de maneira pertinente proposto pelo curador paulista Eduardo Brandão diz respeito ao gênero do auto-retrato, que referenda a nossa relação e aproximação com a imagem, a qual se desloca da esfera do privado para o público. E tudo o mais que isso possa transfigurar-se na representação sobre a crônica de vidas pessoais e seus hábitos cotidianos. Tal discussão ecoou no trabalho contínuo intitulado Caixa de Sapato (Cia de Foto), que retrata a intimidade no cotidiano familiar dos próprios fotógrafos. Nesse sentido, observar a privacidade do outro – temática desbravada por toda a história da fotografia – revela algo sintomático para o olhar: pertencimento e auto-representação. A vida narrada em fotografias, além de ser uma crônica doméstica de outrem (reprojetada em nós mesmos) é também uma equação inerente, mais uma vez, ao tempo enquanto fenômeno de recomposição de memória. Ou seja, o “tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno”, diria o filósofo Vilém Flusser.

Sob esta perspectiva o debate tensionou sobre o eu e o outro visto. Afinal, fotografar é desnudar-se para o outro, é estabelecer uma alteridade e todas suas implicações simbólicas ou sociais que isso possa vir a provocar. Digamos que, desde sempre, a imagem fotográfica esteve relacionada à memória, realidade e documento. E isso é uma herança cultural que nos faz restringir o olhar, em alguns momentos. A imagem fotográfica que vemos não se postula apenas por estes três aspectos; mas sim, como nos apropriamos deles, seja no ato de fazer a fotografia ou em interpretá-la.

Assim, o fazer fotográfico opera um terreno movediço, ambíguo e complexo sobre tempo, espaço e objeto. Mais do que “dominar” a técnica e trabalhar a luz no computador, a idéia e o conceito são balizadores da imagem construída. Portanto, não basta gerenciar os recursos e artifícios tecnológicos se estes não tiverem sua razão de ser na poética fotográfica. É preciso ponderar para termos o frescor de um trabalho exercitado e consciente valer aos nossos olhos. Vale rever os paradigmas sempre, pois se quisermos olhar plenamente é necessário que “as idéias sejam consumidas sem peso”, como refletiu Pio Figueiroa. E isso vale para quem contempla qualquer expressão artística, pois a essência da fotografia está nesse processo franco seja do autor ou do observador comprometidos com a vida e suas imagens.

* Artigo publicado no Jornal do Commercio de 23 de setembro de 2008.

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