Fotos: Alexandre Belém – Escritor Gilvan Lemos
– “Se você me abstraísse mais, poderias me entender”, propôs.
– “Mas a minha relação com você é intimista, de segredo, de tentativa de compreendê-lo…”, refuta.
– “Não veja em mim certezas. O que você contempla é uma ilusão, uma intenção dissimulada, nem sei o que quero dizer”, insiste mais uma vez.
Exausto, questiona: “Mas então por que você se coloca como uma efígie diante de mim? Talvez, fosse melhor não criar ilusões. Talvez, vê-lo e não se importar”.
– “O problema é seu”, sussurra o homem resignado.
O observador guarda o retrato na gaveta da cabeceira e no mesmo instante (como num ato contínuo) recolhe um dos livros do retratado. Quem lhe contará as histórias, lhe dirá as palavras não será o escritor, mas sim a imagem do retrato. Seja com for, foi um encontro… E sem volta.
Vale pensarmos a respeito. O retrato fotográfico gera expectativas. As pessoas transformadas em signos definem suas obras literárias. Não há como fugir delas. O discurso e a palavra possuem sua importância, assim como a inquietude de uma imagem. Não consiste em postergar valores, nem descobrir a hegemonia das duas linguagens ou atribuir maior significado ao texto ou à imagem (seja ela qual for, a fotografia, o cinema, etc.). A relação entre o que apreendemos diante da fotografia de um grande autor, será sempre uma decisão subjetiva e sensorial.
Se lermos e adentramos nos enredos propostos por determinado escritor, sua imagem será impregnada pelo fenômeno que subliminarmente cria uma norma, um corpo para o escritor. Quiçá não seja a mais justa das projeções sobre o outro. O sujeito que idealizamos e que num fluxo inverso inventamos enquanto personagem. Contudo, estamos capitulando o nível da imaginação que codifica elementos da poesia, da prosa, do romance, da ficção ou do realismo, das epistemologias, das narrativas e de atmosferas poéticas autorais. O indivíduo que escreve reconfigura-se, traz a catarse de sua alma para outros níveis (simbólico, alegórico e camaleônico). Clarice Lispector, mulher-escritora, vocifera no meu ouvido angústias, dor, leveza e beleza a cada página. O espírito do olho propõe a Clarice e não a Lispector.
O escritor não tem rosto porque criamos máscaras para todos eles. Demoníaco refletirmos dessa maneira… Porém, de certo, plausível. Mas avassalador também o é quando, em princípio, conduzidos pela atmosfera criativa do discurso, surge a fotografia com sua natureza ontológica de nos “afirmar” identidades. Vemos o representável. Acreditamos na imagem em si ou no devir que ela representa para nós? Sobre representação, os poetas André Breton e Paul Eluard referem-se com sensatez, no fabuloso dicionário abreviado do surrealismo, a seguinte definição: “As representações convencionais das formas geométricas da natureza somente são sedutoras em função de seu poder de ofuscação”.
Postar-se diante da câmera é um exercício de doação, de revelação permitida (ou parcialmente consentida), de papéis sociais e de construção de identidade. Enfim, de representação. É preciso ponderar que o retrato fotográfico é o resultado de uma mediação. O ato de captação da fotografia é costurado pela presença da câmera. Ela conduz o olhar do retratado em movimento pendular entre o desejo deliberado de mostrar-se e o de negá-lo. Nesse momento, a fotografia é o fotógrafo. O qual, assim como o escritor, nos contará essa história. Por conseqüência, a maneira como o fotógrafo coloca a câmera diante do outro é crucial neste processo. Entra em jogo o diálogo silencioso de olhares.
Lucila Nogueira. Poetisa sem medos. Vigorosa e sensível. Escrita que exige propensão à negação de frivolidades. Escritora visualmente exuberante. Seus olhos: profusão categoricamente – ao menos, quando sempre os cruzei por retratos – delineados por indefectível lápis preto. Para mim, Lucila era grave. Não pelo teor semântico do dramático, mas pela força da postura. Hoje em dia, vejo essa escritora por dois ângulos. Um, dos retratos tradicionais daqueles que registram simplesmente. E por outra perspectiva, presencio a mesma Lucila, a mesmíssima pessoa, mas não o mesmo espírito. Nesta recente imagem, ela doa-se, revela o que, de fato, naquele dia permitiu-se desvelar. O enorme lenço sugere e enfatiza aqueles olhos e certa coragem. Nem bem sei que tipo de coragem… Talvez, por isso tenha dito, “esta foto devolveu a minha imagem”. Palavras fortes, assim como o que vemos e o que o seu olhar tenta nos confidenciar. O retrato de Lucila contagia.
Marcus Accioly e Gilvan Lemos. Situações antagônicas diante da lente. Cada um exige reflexão sobre o tempo. Não o tempo presencial nem do momento do dedo no botão da câmera. Esses retratos conotam a essência dos entre-olhares: fotógrafo e fotografado. Accioly, fixamente, penetra na lente. Frontalmente, nos inquire num possível imaginário: “Sim, sou eu mesmo. Por quê?”. O olhar do escritor é plácido, sincero. A aproximação do fotógrafo se espelha na retina de Accioly, insere-se assim o reflexo de quem dirige a câmera fotográfica. O fotógrafo, neste caso, desvincula-se do artifício e da posição dicotômica inerente ao registro. A face deste escritor suplanta a simulação de posar para o outro, pois dessacraliza a individualidade do retrato.
Retomemos, Gilvan Lemos. O escritor fotografado de perfil dentro de um elevador. Perguntas invadem aquela imagem. Por que no elevador, por que de perfil? Aqui, o retrato é rastro de solitude, doçura e introspecção. É o homem reservado, como dizem alguns que o conhecem. Todavia, há um mundo ali dentro daquele prosaico elevador e que não é simples e tampouco da ação cotidiana. Apreende-se a vastidão e complexidade da obra de Gilvan Lemos. Talvez, não fosse a hora da pose, do momento do “clique” e assim não fitou a câmera. Não importa, o vemos plenamente num tempo lânguido, flácido, cuja narração não convence. Contemplamos o não-tempo, a não-ação. É o hiato desse tempo que se sente na imagem a transposição do delicado Gilvan Lemos na onipresença de sua obra.
No universo imagético, a crença é a possibilidade de sacralização. Acreditamos porque cremos. Confesso que faço memória seletiva de dado escritor pela autoria do fotógrafo. Marguerite Duras por Robert Doisneau ou Duras por Richard Avedon. Duas imagens lindas e significativas, duas representações que dependem da memória envolvida pelo observador-leitor. Entramos, então, no campo sensível da memória. A autora Ecléa Bosi lembra Henri Bergson que nos ajuda a entender a dimensão do ver e do lembrar quando se refere que “a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representações. (…) A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora”.
Assim, os vários retratos do sociólogo Gilberto Freyre configuram a personalidade de um dos mais importantes escritores e intelectuais do século 20, da mesma maneira que transitam em nosso imaginário. A clássica fotografia de Freyre em sua residência, lendo numa poltrona de forma despojada é suprema evocação: do homem, de seu entorno (a leitura) e de sua maneira de ser. Em analogia, aos retratos mais “elegantes” de Freyre, percebemos nesta que há um índice, o qual dá sentido à imagem. A perna de Freyre pousada no “braço” da berger de couro é quase uma provocação, só não é pela clareza de espontaneidade. De certo, é a chance improvável do grande mestre se mostrar para o mundo. Ao colocar seu corpo daquele modo e permitir que assim fosse fotografado, percebe-se o símbolo de intimidade. Agrega-se, neste retrato, a categoria do autor-homem, muito além do autor-personagem. Este último, não raro, propenso que o sujeito desdobre-se em objetificação.
Consideremos outros escritores, cuja preferência é o da invisibilidade. Os que não gostam de serem fotografados, que são avessos a entrevistas ou a qualquer forma de exposição. Ou seja, de aparecer em contraponto às suas produções literárias. Emblematicamente, o curitibano Dalton Trevisan foge (literalmente) de associações imagéticas. Não se deixa fotografar e refuta dar entrevistas. Daí, vislumbramos outro tipo de escritor, o do esquivo, do contorcionista em não nos impregnar de referências identidárias. Muito embora, nos faça falta conhecer o indivíduo por trás da escrita, a ausência pode ampliar a própria criação de construirmos no imaginário o nosso escritor. Não ele mesmo com sua sedução corporal. De modo que partimos das palavras para envolvermo-nos sedutoramente com o autor.
Infelizmente, um repórter-fotográfico flagrou Dalton Trevisan andando pela rua. O instantâneo foi furtivo, não consentido, roubado… Preferiria não tê-lo visto assim, o mistério foi partido. Não o vi plenamente. Serviu para contaminar a minha imaginação. Agora, quando toco em um livro de Trevisan, a sensação é a de que ele está fugindo de mim. O filósofo Jean-Paul Sartre consegue nos confortar quando coloca: “O único meio de constituir uma teoria verdadeira da existência em imagem seria limitar-se rigorosamente a nada afirmar sobre esta que não tivesse diretamente sua fonte numa experiência reflexiva”. Apenas um parêntese, reconheço Sartre através de seu retrato feito por Henri Cartier-Bresson.
Novamente, retomam o diálogo.
– “Você insiste em criar vínculos. Quem disse que tenho interesse neste tipo de relação”, diz enfático.
– “Não sei por que faço isso. Inquietação em formar existências, talvez. Gosto de tê-lo por aqui perto de mim e de suas palavras. É um acalanto, um gosto pelo que dizes e que de tempos em tempos lhe revisito. Qual mal há nisso?”, explanou já sôfrega sem muita certeza do que pensar.
Difusa esta situação. Diria mais, obsessão minha em recortar e guardar retratos dos autores em seus respectivos livros. De certo, uma mania de colecionar rostos. Após esse diálogo perdi o sono. Não deveria ter aberto o livro Filosofia da Imaginação Criadora, do poeta Charles Baudelaire (1821-1867). O tenho há quatorze anos e a cada releitura me deparo com o retrato de Baudelaire feito por outro grande homem e fotógrafo Félix Nadar (1820-1910). A despeito do que Baudelaire considerava que o advento da fotografia poderia banalizar a arte, posou lindamente. Tenho este retrato que me persegue… Sempre digo para o “meu” Baudelaire que ainda hei de entendê-lo melhor. Ele, não sei o que acha, tampouco deve me suportar o olhando insistentemente. Volto a Bergson que dá-nos um consolo, pois lembranças e percepções são como a sombra junto ao corpo. Deve ser por isso que corto jornais e os ponho nos livros, num ato litúrgico de depositar a imagem dos escritores nesta espécie de relicário. Culpa minha tudo isso.
* Artigo publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural (dezembro de 2009). O editor do Pernambuco, Schneider Carpeggiani, me pediu uma analise de alguns retratos publicados no jornal nos últimos meses.
Versão Flip do Suplemento.
Poeta Marcus Accioly
Poetisa Lucila Nogueira
[…] de Georgia Quintas sobre retratos de escritores. Publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural de […]