Duas mulheres mexicanas se encontraram. Graciela e Frida. Não, a história não é simples e sequer limitada pelo momento do encontro. O meio pelo qual se narra é a imagem. Colada na superfície da fotografia, conduz estados imaginativos através da vida de uma mulher resgatada por outra. A fotógrafa Graciela Iturbide não se deparou com a pessoa, a figura feminina, mas com os objetos que pertenciam ao cotidiano privado de Frida Kahlo (1907-1954) – ícone mexicano das artes plásticas e ativista política. Portanto, vemos fotografias que exercitam a dúvida, a ausência da pessoa pela existência das coisas, do lugar físico que acomoda um horizonte poético sem maneirismos, mas com precisão. Fazendo apenas hipérboles para a fruição com a alma.
Mas vamos à história. Quando Frida Kahlo morreu, Diego Rivera, seu marido e também pintor, cerrou o que considerava de mais íntimo na casa onde ela havia nascido e morrido: o banheiro. Tomou assim a dimensão de um não lugar, o relicário estanque, guardado por ordem expressa. O luto fez com que se preservasse e respeitasse a dor que sufocava aquele espaço. Até que um dia, a fotógrafa entrou serenamente. Ela e a câmera fotográfica. Somente as duas. Prontas para romperem a morte. O olhar através da câmera iria escoar os fantasmas, produzir imagens e dar vida a objetos exilados da nossa visão. Diria mesmo que, havia muito, fenecidos na instância da memória. Ao negar o trânsito do olhar naquele cômodo, Diego Rivera cuidou da amada aos olhos dos outros – mesmo que esses fossem admiradores de quem ali viveu. O marido sacralizou o que de mais íntimo existia naquela casa, seguindo sua emoção.
A casa, após a partida de Frida, tornou-se museu. Toda a casa descamou-se, ao longo desses anos, pelos olhares dos visitantes. Menos o banheiro… Em 2006, veio o convite e nasceram as fotografias. Podemos vê-las no livro “El Baño de Frida Kahlo” (Editorial RM, México, 2009) da fotógrafa mexicana Graciela Iturbide feitas na Casa Azul (em Coyoacán, México) – lugar onde nasceu e morreu Frida Kahlo.
Graciela Iturbide é um dos nomes mais importantes da fotografia mundial. Seu trabalho é alimentado pela alteridade, em conviver com o outro de perto, fotografando pela honestidade de doar-se pelo olhar. O ponto de vista de Iturbide sempre foi esse. Os ensaios sobre povos indígenas mexicanos representam o registro de identidade de maneira eloquente e plasticamente envolvente. Para ela, a motivação criativa surge de sua terra e sua gente.
Voltemos à cena. Graciela chegara. Havia sido convidada, sem saber muito bem o porquê fora a escolhida. As cores feéricas das paredes da casa – que não são apenas azuis – lhe acompanharam. O espaço era exótico, até mesmo prosaico, como o motivo a ser fotografado: um banheiro. O que fazer diante, ou melhor, dentro dele? Seguiu. Ao abrir a porta, o ambiente respirou. Cinquenta anos, morosamente, despertavam através da presença de Graciela. A câmera começara a reagir.
A fotógrafa encontrou a arqueologia da dor de Frida Kahlo. A vida de uma das mais importantes pintoras do século 20 foi pontuada por vários problemas de saúde. Aos seis anos, Frida teve poliomielite que deixou sequelas numa de suas pernas. Jovem, com dezoito anos, foi vítima de um acidente terrível de ônibus que a fez passar por mais de trinta cirurgias na coluna. Coletes ortopédicos eram corriqueiros na tentativa de convalescência de todos os seus males físicos. Em 1934, foi preciso amputar seus dedos do pé direito. E em 1953, por conta de uma gangrena teve sua perna direita amputada.
As imagens capturaram os objetos – a crueza dos vestígios. Há alguns coletes, barras de apoio na parede, pares de muleta, uma bata de hospital manchada de tinta, bolsa térmica. E mais… A surpresa em também habitar aquele espaço uma tartaruga empalhada e certo pôster do líder russo Lenin. Neste cenário, a fotógrafa passa a documentar a presença dos objetos dando-lhes expressividade em determinar outros recortes no próprio território. As fotografias do “baño de Frida” não são naturezas-mortas. Ao contrário, pertencem a uma vigorosa abordagem de criar e reconduzir percepções. A elegância da plasticidade em preto e branco e as composições minimalistas negam qualquer relação com a espetacularização do sofrimento, da fragilidade ou da indiscrição.
As coisas apresentadas por Graciela indiciam por si mesmas as vicissitudes de quem as necessitavam. Desta forma, o vazio é preenchido pelo lirismo em trazer aos olhos de outrem a sensação do humano. Como se os objetos se referissem à latência do corpo de Frida, mas sem os clichês depurados. De modo que essas imagens fotográficas passam a tratar a realidade como dispositivo do instante em que Graciela adentra o banheiro. Já não é mais passado ou somente memória.
Rememoramos Frida pelo ato, escolhas e narração com os quais a fotógrafa resolve imaginar os objetos enquanto elementos autônomos na imagem. Portanto, percebemos em sua retórica argumentos de cisão com a prática em registrar o real intermediado pela destreza em ludibriar os referentes através da investigação e inquietação autorais. Assim como Lenin e a curiosa tartaruga que foram parar dentro da banheira, a própria Graciela também resolve se colocar. E então, auto-retrata seus pés em alusão direta aos trabalhos de Frida. Tem-se desse modo, a dessacralização do lugar – acompanhada da transferência de ícones (os pés que já não são os de Frida) –, amplia a perspectiva simbólica do contexto fotografado.
Precisamos ler esse ensaio de Graciela Iturbide como aproximação com o pertencimento da gramática de outrem. Contemplamos, portanto, o antagonismo da memória. Afinal, como escreveu o filósofo Henri Bergson, “imaginar não é lembrar-se”. Parece constituir uma situação dual. Todavia, é. Apesar de sabermos do histórico e da impregnância do mito e da dor da pintora mexicana, a poética fotográfica interpreta as obviedades simbólicas. Sem desprender-se da inexorável figura estóica que representa Frida Kahlo ante sua vida, é o ponto de vista subjetivo e autoral da fotógrafa que reordena os resquícios, rastros e silêncios sentidos pela experiência naquele banheiro. Fica mais fácil entender esse pensamento, quando se compartilha da postura de Graciela Iturbide a respeito da produção de imagens: “Nunca penso nas minhas imagens como um projeto, eu simplesmente vivo as situações e as fotografo, é depois que eu descubro as imagens”.
Entretanto, o ensaio fotográfico vai além. A câmera move-se da paisagem do quarto de banho. Caminha com Graciela Iturbide para fora da casa. Certo objeto, inanimado, assim como todo o resto dos elementos encontrados no banheiro possuía tal dimensão simbólica que parecia pedir ajuda para respirar. Graciela amparou. Então o colocou, sozinho, encostado no muro, levemente inclinado para o lado esquerdo da composição. Lá está ela: a prótese da perna de Frida. A imagem é suave, delicada, envolta pela luz filtrada de alguma árvore. O objeto centralizado estabelece tal grau de subjetividade que não evoca apenas a memória e o sofrimento de Frida, mas nos faz refletir sobre o exercício do gesto em confabular a realidade.
A perna torna-se a imagem-ícone que carrega consigo a representação da vida de Frida. Contudo, esta mesma perna nos estimula a pensar na trajetória das coisas e seus efeitos na fotografia. A visão fantástica proposta de modo singelo na estética é o resultado da vivência de Graciela. O fotografável, neste caso, foi o tempo de depurar a força dos signos de um mito. A perna é Frida, que agora é fruto da experiência de Graciela. A ação implícita em deslocar o fato contribui para a desmaterialização da coisa que atesta e diz. E essa é uma grande saída para a fotografia.
Mais do que isso, a imagem fotográfica descarrilha o próprio dispositivo quando rompe com a ideia de perceber o referente pela subjetividade. A estética encaminha sensações, contudo muito mais imprecisões do que clarezas. Pois, neste caso, vou utilizar a expressão “imensidão íntima” do filósofo Gaston Bachelard para os efeitos da fotografia. As bordas da imagem nunca dão conta da vastidão dos significados e relações com o mundo e os sentimentos de determinado espaço fotografado e de quem o habita. A poética desconcertante realizada por Graciela Iturbide está em conduzir o “dentro” e o “fora” da imagem de maneira consonante com o fenômeno que ocorria na ação de entrada do seu olhar fotográfico. Ao tirar a prótese do seu canto surdo, o objeto passa a ser o epicentro da vida de qualquer mulher – aos privados das informações biográficas que contextualizam essa imagem. Para os outros “leitores”, a perna reverbera a imensidão íntima do que se possa sentir no presente e recompor do passado o ícone profundo que fora Frida.
A fotografia que vemos não está morta. Ela inicia-se antes da tomada do enquadramento. O percurso anterior a isso pode direcionar a riqueza e complexidade que existe em tornar a imagem um signo com manifestações de significado, encantamento e poética. O que faz a imagem fotográfica pertencer ao campo do sensível? Por que a fotografia deve ir além do documental? E o que representa a câmera invadir determinado espaço repleto de sentidos? Ou seja, qual a razão em fazer a fotografia acontecer? Quem pode nos responder a todas estas questões é o próprio trabalho de Graciela com Frida. Afinal, está ali a imagem fotográfica como revelação. Na verdade, ela é mais, pois nos compromete com o imaginário, tempos cruzados e a sensação pela ausência. A poeira e a perna de Frida saíram da casa. Assim é a fotografia.
* Texto originalmente publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural ( julho de 2010) e postado no Fórum Virtual, blog do 2 º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo.