Olhar guardado

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Fotógrafo: Lula Cardoso Ayres.

Pesquisa, curadoria e expografia: Georgia Quintas.

Local: Museu de Arte Moderna Alosísio Magalhães – Mamam, Recife/PE,  15 de dezembro de 2010 e janeiro de 2011.

Fotos: Lula Cardoso Ayres.

Apresentação

Tentemos imaginar a magia da descoberta de algo raro ao abrir uma gaveta que não é nossa. Ou do encantamento ao afastar a poeira de uma fotografia e ela de repente parecer flutuar. A exposição Olhar Guardado: fotografias de Lula Cardoso Ayres, de certo modo, remonta para nossa contemporaneidade o fenômeno da memória e do tempo a partir do registro fotográfico de realidades distantes. Poderiam ser quaisquer fotografias, mas também não o são. O fotógrafo era Lula Cardoso Ayres (1910-1987), pernambucano de Rio Formoso, um dos mais importantes artistas brasileiros. Pintor, muralista e designer gráfico, considerado modernista e regionalista, Lula transformou sua extensa obra em um inventário de sua cultura, sua terra e sua gente. Com a fotografia, Lula apreendeu que a técnica lhe possibilitava documentar. No entanto, seu talento não se deslocou e o que vemos é uma fotografia que se expressa e respira plenamente pelo olhar poético deste artista. O arquivo fotográfico de Lula Cardoso Ayres, além de possuir valor inestimável enquanto documento histórico e social, nos apresenta a beleza de um olhar apaixonado pela representação da vida por meio das imagens. Olhar este, guardado em fotografias até agora.

Temas

Os temas trabalhados pelo fotógrafo Lula Cardoso Ayres foram permeados pela cultura pernambucana, pela cidade do Recife e pelo engenho Cucaú (em Rio Formoso) do seu pai. Também recorrentes em toda sua obra pictórica, Lula documentou manifestações culturais pernambucanas como o maracatu, caboclinho, bumba-meu-boi, carnavais de rua, troças, sobrados, portões e a vida dos trabalhadores rurais de engenhos. Lula, o artista, investigava desmedidamente o contexto e as representações culturais influenciado pela busca por sua própria identidade.

Esta exposição reúne mais de 90 imagens, sendo 29 cópias de época do acervo fotográfico do artista. Imagens que compreendem, principalmente, as décadas de 1930 e 1940. As identificações das fotografias correspondem à indexação feita pelo fotógrafo. Contudo, algumas imagens não possuem tais dados informativos.

Muitas vezes, a fotografia se torna ambígua quando realizada por um pintor. É comum que se estabeleça um propósito: a fotografia como esboço para fixar a imagem para trabalhos em outros suportes (pinturas, desenhos, painéis, murais, etc.). Embora, sejam perceptíveis “traços” de imagens fotográficas na pintura de Lula, sua obra fotográfica é autônoma pela qualidade com que se dedicou a esta linguagem,  através da força plástica nas composições, na construção das poses e no equilíbrio da luz.

Lula Cardoso Ayres aproximou-se das temáticas com olhar de antropólogo e registrou com encantamento poético de artista as particularidades e inquietações sociais que ajudam a nos reconhecermos em nossa cultura.

Inventário do Olhar

Acervos fotográficos perduram pela maneira como são guardados. No caso do fotógrafo Lula Cardoso Ayres, o procedimento de guarda e identificação do seu arquivo nos conta sobre o capricho, zelo e, porque não dizer, carinho por suas imagens fotográficas. Ao seu modo, arquivava em envelopes os negativos de médio formato feitos com a câmera Rolleiflex. Em folhas de fichários, confeccionados pelo próprio Lula, acondicionava os negativos de 35 mm, produzidos com sua Leica.

Podemos observar aqui a fotografia vista como objeto de memória, e, sobretudo, como reflexão sobre a própria percepção do artista diante das imagens capturadas. Esse “segundo olhar” de Lula sobre suas fotografias nos revela particularidades do pintor ao analisar e ressignificar algumas imagens. Percebe-se na acuidade visual de Lula com as fotografias o reflexo de seu apuro pictórico. Analisava seus negativos com cuidado. Para ele, a imagem final, muitas vezes, era recortada, centralizada, “ajustada” de alguma maneira para que a composição revelasse o essencial. Os contatos (ampliações no tamanho do negativo) serviam como guia para esse seu processo de edição e de indicações para ampliações (assinaladas em nanquim preto e branco).

Durante a pesquisa, neste encontro sugestivo ante esse acervo adormecido, Lula Cardoso Ayres estava presente. Ao retirar cada tira de negativo das frágeis dobraduras das folhas de álbuns, o barbante posto delicadamente por Lula para facilitar o manuseio  reacendia esse despertar. No gesto de inventariar fotografias cabe o sentido da memória de um tempo que pertence a todos nós e que alguém guardou como num relicário.

Dona Santa

Destaca-se na produção fotográfica de Lula Cardoso Ayres, os retratos de Maria Júlia do Nascimento (1877-1962), a Dona Santa, a mais famosa rainha de maracatu de baque virado. Personagem antológico do Maracatu Nação Elefante, Dona Santa é lembrada por quem a conhecia como uma mulher altivamente elegante. E toda segunda-feira de Carnaval, Dona Santa tornava-se a Rainha. Vestida como uma majestade europeia, envolta em seda, cetim, ricos bordados e adornada com o exagero próprio das bijuterias típicas do traje. Para dar mais sentido ao seu “papel”, usava como quem nasce com eles, a capa de gola alta, o cetro e a coroa. Mas a imagem soberba de Dona Santa ainda era mais vigorosa por conta do espadim de metal, com o qual abençoava seus “súditos”. Os retratos feitos por Lula desta mulher, Rainha e Mãe de Santo, são movidos pelo olhar penetrante e pela atmosfera hierática. Fotografias que transformam a ideia da fantasia em imaginário valioso e simbólic

* Textos da exposição Olhar guardado – Fotografias de Lula Cardoso Ayres que ficou em cartaz entre 15 de dezembro de 2010 e janeiro de 2011 no Museu de Arte Moderna Alosísio Magalhães – Mamam, Recife/PE. Detalhes, aqui.

Fotos: Leo Caldas – Clique para ampliar.

O móvel da foto acima foi desenhado e construído para a exposição. Nele, ficaram negativos, contatos e cópias fotográficas.

Clique na foto para ampliar em ver os detalhes do móvel

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