O fotógrafo Julio Bittencourt passou os últimos anos envolvido num projeto intenso. Muitas viagens e longos momentos no mesmo lugar. O imediatismo do clique se distendia em horas; horas para capturar cenas, que guardam histórias de pessoas e lugares. É um trabalho que deve ser acessado com calma, com paciência. O que está impregnado em cada imagem é muito mais do que simples ambientes.
Julio chega neste ensaio depois de sucessos: Prestes Maia e Ramos. O novo ensaio, “Algumas coisas são perdidas para nunca mais serem encontradas”, já inicia a trajetória trilhando um caminho. Acabou de ganhar o XIII Prêmio Marc Ferrez.
Todos os posts da seção Processo de criação, aqui. Os dois últimos: Ana Carolina Vieira e André Vieira.
Fotos: Julio Bittencourt – Ensaio “Algumas coisas são perdidas para nunca mais serem encontradas”, 2011-2013
Julio, nos conte sobre o projeto?
O projeto se chama “Algumas coisas são perdidas para nunca mais serem encontradas” e fala sobre a passagem do tempo, o que levamos conosco e o que deixamos pra trás. A escolha por fábricas falidas, onde pessoas trabalharam ou depois viveram, tem particular importância no contexto deste ensaio. Vem daí objetos e espaços fotografados que representam um período único da história econômica – o industrial –, e o questionamento que penso ser universal. A curiosidade e até ansiedade em busca de resposta à pergunta que atravessa o tempo: “Para onde vamos?”
A opção por fotografar em centros super populosos ou que já foram um dia, e em regiões opostas do planeta, é uma forma de traduzir minha percepção pessoal de que nós (pessoas) somos muito parecidas por dentro – em expectativas, sentimentos, desejos e angústias. E essa mistura de percepções acabam por se refletir em nosso imediato mundo exterior, independente de nossa origem e lugar onde vivemos.
Através desses objetos tentei recontar histórias, memórias e cicatrizes que nós e o próprio tempo imprimimos em cada um deles – levando ou não esta carga física conosco. A marca de cada um também estará em nós impressa. E retratar a fração de tempo de tantos iguais a nós é como captar uma energia única que não se apagou.
Não me considero um acumulador de objetos – entre outras coisas faltam até algumas panelas em casa – e me interessa muito essa necessidade de apropriação dos objetos por pessoas ou cidades. E também o inverso. Sou extremamente curioso quanto a esse sentimento e consequentemente sobre as histórias e vidas que as coisas carregam.
Como foi a dinâmica da produção das imagens?
Foram dois anos e meio de projeto e muitas horas de exposição. Quatro, cinco meses dedicados à pesquisa visitando locais e propriedades e, principalmente, tentando entrar neles. A pesquisa se deu andando de carro e a pé por São Paulo, alguns livros e outras fontes na internet sobre a história industrial da cidade.
A primeira parte foi produzida ao longo de um ano e meio em fábricas abandonadas no centro de São Paulo onde pessoas depois ocuparam estes espaços, viveram ou até criaram negócios, enquanto a segunda parte, recém concluída, foi produzida em uma ilha também abandonada, no sul do Japão.
Com a intenção determinada de tentar registrar as marcas do tempo em tudo que fotografei, decidi clicar sempre entre 19 horas e 5 horas, no breu, e por isso a grande maioria dessas imagens têm longas exposições – variando entre 3 e 6 horas para cada foto tirada. Embora tenha produzido todo o trabalho com uma câmera digital, onde tudo acontece rápido, o tempo e fluência do projeto com certeza não foram.
O processo me fez pensar e repensar muitas das cenas fotografadas, diminuir os erros e montar o quebra-cabeça aos poucos, foto a foto, dia a dia, mês a mês.
Em que estágio se encontra o projeto agora?
O projeto possui um grande número de imagens, o que vai possibilitar recortes diferentes sobre o mesmo trabalho e assim imagino tocá-lo.
A primeira exposição está pronta e vai abrir a nova 1500 Gallery, no Rio, entre janeiro e fevereiro de 2014, com curadoria da Ilana Bessler. Depois disso vamos fazer uma exposição a céu aberto no centro de São Paulo, em dois lugares distintos, através do XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez, com curadoria do Prof. Rubens Fernandes Jr. E, por último, duas outras duas exposições que ainda depende de alinhamento de alguns detalhes que estão em andamento. Uma no Brasil e outra no exterior.
Vejo o livro sempre como a última etapa do trabalho fotográfico. E, embora já tenha desenhado algumas propostas, vou tocar o livro pra valer no segundo semestre de 2014, quando deve ser publicado. Ramos será publicado antes disso.
A priori, este seu ensaio é diferente dos outros pela questão da falta de personagens (reais, carnais). Isso foi casual, pensado? O retrato – de pessoas e da sociedade – tão explorado nos outros ensaios foi substituído por outros elementos?
Foi pensado e com o intuito de se encaixar dentro do tema central que venho pesquisando desde as janelas do ensaio “Prestes Maia” – que busca investigar as cidades e como e porque vivemos da forma que vivemos nelas. Embora essa diferença seja evidente neste projeto, encaro a falta de personagens reais não necessariamente como um substituição, mas como mais um pedaço de uma série de histórias dentro deste tema e que pretendo fechar até 2016 com outros três projetos, um deles já em produção.
Como você sai de um projeto deste onde o silêncio e a solidão parecem tão presentes?
Vejo como um processo natural. Na minha cabeça, este e os outros projetos fazem parte de um grupo de trabalhos que são subtemas de um assunto central, presente em todos eles, como disse antes. São histórias distintas, clicadas de maneiras distintas e que a meu ver possuem esse fio condutor. O homem, as cidades e seus espaços e nossas coisas ou as coisas de cada um. De alguma maneira todas passam por lá. E de alguma maneira todas têm sua passagem solitária, mesmo quando formam um conjunto final.
Assim como em “Ramos”, onde senti a necessidade de tocar um projeto “menos dirigido”, controlado, deixando as cenas fluírem mais, penso que esse também foi uma necessidade pessoal e pensada. Neste último trabalho, a necessidade era contar histórias sem as pessoas fisicamente presentes. Mas nas imagens, através dos objetos, os personagens estão lá e com suas cicatrizes e, porque não?, com suas alegrias.
Em relação ao silêncio e a solidão, acho que elas sempre estiveram comigo e, como para muitos, com o ato de fotografar. Claro que ao fotografar alguém existe uma natural troca, um ritual, onde metade da foto é sua e a outra é dela – do fotografado. Talvez eu tenha levado a solidão e o silêncio ao extremo neste projeto no âmbito pessoal, mas com certeza não deixei de fotografar pessoas – elas só não estavam mais lá. Mas as coisas perdidas estavam e tentei encontrá-las.
Bravo! Bravíssimo!
A sutileza com que Julio Bittencourt se aprofunda no tema que centra seu trabalho é, realmente, admirável. Com esse trabalho, Bittencourt enaltece a beleza de sentimentos tão introspectivos, que teimamos em manter no escuro.
Apaixonado por trabalhadores braçais e ambientes industriais, sou meio suspeito para falar. Enfim: o colega merece todo o nosso reconhecimento e apoio.
Quisera eu, poder estar na inauguração!
Parabéns, Bittencourt
João Bosco Nunes.