Minha câmera é como um bom Deus

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Apagar

Mariechen, também conhecida como velha Marie ou véia Marie, tinha uma câmera Agfa 54 que custava quatro marcos imperiais quando foi lançada em 1932, na Alemanha, em meio à crise mundial. Alguns achavam que o modelo não era esse e sim uma Agfa Especial, lançada anos depois. Outro garante era a 54 mesmo, conhecida como Caixa1, dizendo ter visto o nome escrito com toda nitidez embaixo da lente. Antes dela só havia a Tengor, da Zeiss-Ikon. E a Agfa havia se popularizado com o slogan “quem fotografa aproveita a vida”.

Mariechen tinha duas outras câmeras, uma Leica e uma Hasselblad, herança de Hans, marido fotógrafo falecido, mas as usava muito pouco. A que vivia pendurada em seu pescoço era mesmo a Agfa, sobrevivente de um bombardeio e incêndio e que parecia gasta. Era com ela que fotografava seguindo a inspiração do momento e os pedidos do escritor. Fotografava deitada, de cócoras, em posições retorcidas e em situações que despertavam a curiosidade dos outros. E também a família dele, os seis filhos legítimos e dois agregados, que havia tido com quatro mulheres diferentes, estas, fotografadas separadamente.

Não se sabe de outras fotografias feitas fora da família do escritor.

Por indicação do escritor, fotografava bitucas de cigarros, palitos queimados, a ratazana que ele criava e o que mais fosse pedido. Fotografava tudo e corria para a câmara escura para revelar e ampliar os filmes. E ai vinha a surpresa: as ampliações mostravam o passado ou o futuro do que havia fotografado, nunca o presente. Mostrava também o desejo de retratados. Ela mesmo pedia, ao fazer um retrato, que a pessoa desejasse alguma coisa.

Um dia, por exemplo, o escritor, que morava num prédio semidestruído por bombardeios e onde havia vários apartamentos abandonados, quis conhecê-los e conseguiu as chaves. Dentro deles, os escombros: sofás rasgados, apodrecidos, com molas expostas, um piano arrebentado, sem tampo e poucas teclas, sujeira, tudo muito escuro. Todos concluíram que as fotos não conseguiriam registrar nada mas Mariechen apontou sua Agfa, sem olhar no visor, ela nunca olhava no visor, e fotografou. Quando mostrou as ampliações, o apartamento estava intacto, nenhum sinal de destruição, tudo muito nítido, iluminado como haveria de ter sido.

Outra vez, fotografou a filha ainda jovem do escritor que posava para ela com duas amigas, todas de jeans e blusas desleixadas. As ampliações trouxeram imagens das garotas nuas, passeando pelo centro de Berlim.

Ela explica: Minha câmera é como um bom Deus: vê tudo o que é, o que foi e o que será. Ninguém pode enganá-la. “Ela simplesmente enxerga por trás das coisas”.

Nenhuma de suas fotos é conhecida. Ampliações e negativos foram destruídos.

Mariechen não existe. Ou melhor, não existia até 2008 quando o escritor alemão Gunter Grass resolveu homenagear a fotógrafa de sua família, Maria Rama, a transformando numa das personagens onipresente e cheia de histórias do seu autobiográfico A Caixa – Histórias da Câmara Escura (Die Box), traduzido por Marcelo Backes e publicado recentemente pela Editora Record e já em todas as livrarias.

Moracy Oliveira.

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