Foto: Alberto Henschel & Cº – Herculano – Carte de visite – Recife, c.1860-1889
O universo das aparências humanas pode ser bastante instigante e extremamente curioso de explorá-lo. Não é novidade que a moda cria repertório visual, refletindo uma época, tendências estilísticas, possibilidades de tecnologia quanto aos materiais a serem usados na produção das roupas – ou seja, elementos que conseqüentemente plasmam questões comportamentais e de valores simbólicos. Entretanto, o próprio corpo produz “signos” naturais aparentes que revelam histórias curiosas como nos sugere a intrincada rede de significados que, simplesmente, uma barba pode desencadear.
Sinceramente, nunca parei para refletir sobre os pêlos faciais. Em termos de imaginário, os “barbudos” sempre nos rondam desde muito cedo através de representações mais pueris como na imagem de Papai Noel ou na emblemática figura de Cristo. E então, nos recordamos de algum avô “envolto” numa terna barba branquinha, tão fofa que parece de algodão como as crianças costumam dizer. No entanto, conheci um livro português raríssimo, “A Barba em Portugal“, de J. Leite de Vasconcelos, edição de 1925, que me fez adentrar no maravilhoso mundo – por mim desconhecido – da história do uso da barba.
É uma verdadeira pérola para quem gosta de “sentir” livros antigos: o cheiro do passado, folhas amareladas com uma fina camada de poeira, tipologia elegante, os delicados detalhes da diagramação. Puro deleite. Contudo, o seu conteúdo é ainda mais prazeroso. Trata-se de um estudo de etnografia comparativa sob uma perspectiva histórica, com ilustrações sobre o universo da barba, suas representações visuais, os materiais utilizados no ato de barbear, assim como fotografias antigas que inventariam as mais criativas maneiras de domar com estilo tais barbas.
Talvez, por não ter uma origem acadêmica, a análise do autor ganhe uma narrativa quase de almanaque. Repleto de referências da literatura sobre o assunto (monografias, enciclopédias, livros, artigos, etc.), Leite de Vasconcelos escreve de forma simples. E o que poderia tornar-se um texto datado ou anacrônico é absolutamente o oposto, revela uma linguagem dinâmica, envolvente e atemporal. Com a mesma simplicidade estampada no título, J. Leite de Vasconcelos nos coloca – com tamanha sinceridade – que o seu trabalho “é mais uma colecção de apontamentos, do que estudo definitivo”. Assim, com maestria, explica o que de fato a barba tem a “dizer” através de uma reflexão antropológica e simbólica. Por outro lado, também descreve sobre o ofício do barbeiro, as formas e cortes da barba e seus significados ao longo dos tempos, além de discutir a barba enquanto linguagem e sua presença na literatura.
Há explicações bastante pitorescas. Antigamente, os antropólogos consideravam que o uso da barba era estereotipado e que tinha um caráter de evolução e progresso. Diziam até, que “por isso certas raças não a adquiriram ainda, nem o sexo feminino a possue como propria”. Eça de Queiroz também é lembrado quando cita em sua obra Ilustre Casa de Ramires a figura monstruosa de um homem peludo, que alude diretamente à noção do homem selvagem, bárbaro – o qual ainda vagueia pelo estágio da natureza, bem distante da civilidade e da cultura. Esse teor maniqueísta prevaleceu em outros simbolismos da barba. De maneira que, fosse a barba clássica, bigode, suíças, cavanhaques e mais outras formas estranhíssimas que tiveram seu momento de glória no passado e hoje superadas, o homem que as possuísse seria associado a alguns valores culturais.
Digamos que o próprio rosto projetava muitos símbolos, que insinuaria (sim, porque nem sempre a verdade está na cara) status social, virilidade, honra, seriedade e sabedoria. Nesse sentido, alguma imagem naturalmente vem à mente recompondo uma iconografia de filósofos, figuras eclesiásticas, a monarquia, a aristocracia, enfim uma elite de barbas fartas. Em contraponto, a tais aspectos positivos provenientes da barba, outras interpretações simbólicas podem sugerir tristeza, depressão ou profundo desgosto da alma. Assim, a barba seria um “termômetro” de sentimentos, reflexo de uma grande perda ou de determinada penitência. Como relatou o autor, em Açores (Portugal) era costume não fazer a barba por motivo de luto, deixando o rosto ser invadido pela dor do espírito.
E as pobres mulheres que ainda hoje sofrem com os insistentes buços que causam mal-estar a quem os têm e a quem os vê. Relativizemos o olhar, mal-estar e certo constrangimento causado, principalmente, pelo padrão de beleza contemporâneo e pela rigidez em ser perfeita e bela para todo o sempre. No livro, pobres são as mulheres barbudas. Sim, barbudas. Segundo lembra o autor, Heródoto escreveu com admiração sobre a história de uma sacerdotisa da deusa Athena. Ao pressentir algum infortúnio, lhe surge espontaneamente a barba como forma de aviso ao seu povo. Ainda sobre as mulheres, outra história mais dramática é relatada sobre uma santa barbuda de origem portuguesa, Santa Liberata. O autor conta que a mulher para não se casar com seu pretendente, pede a Deus que a torne feia. Após o pedido ser realizado, o pai com vergonha e desesperado crucifica a própria filha. Claro, tornou-se mártir e milagrosa. A vida das mulheres comuns barbadas não era fácil. Estigmatizadas pelo estranhamento que causavam, sofriam discriminação social isolando-as. A feminilidade era questionada, fato que se refletia na sociabilidade. Em conseqüência desta exclusão social, nunca casavam-se.
O fato é que a barba torna-se identidade indissociável de muitos homens. Diria mais, o uso da barba promove uma estética contundente. Não seria exagero dizer que alguns barbudos célebres, como Ernest Hemingway, Fidel Castro e mesmo o presidente Lula estabeleceram a essa característica certas particularidades fundamentais para a construção do nosso imaginário. Suas barbas são de domínio público, converteram-se em imagens-ícones. Estes senhores, cada um ao seu modo, atestam significados relevantes que ganham dimensão ante o olhar da sociedade. Mesmo que provoque certa simbologia ideológica-política, outros sentidos serão agregados a tais imagens como coragem, romantismo, superação e determinação. Sendo assim, a barba é como tudo no nosso corpo que promove a representação e reverbera a expressão de contextos sociais. Ou simplesmente, as próprias narrativas que sulcam as rugas de nossos rostos.
* Publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural em abril de 2008.