Albert Eckhout – Esboço Tapuia
O conteúdo imagético formulado pelo pintor holandês Albert Eckhout (1610-1666) despreende-se da realidade matérica e detém uma outra perspectiva mais subjetiva, sendo disposto a hibridez entre a parcialidade estilística e a memória temporal. Desses dois elementos surge a dualidade da imagem: princípio fundante para o entendimento da ontologia dessa imagem que, ao mesmo tempo, eterniza a idiossincrasia pictórica e esquadrinha uma memória do passado para a contemporaneidade.
Dessa maneira, a iconicidade organizada pelo pintor Albert Eckhout é constitutiva de elementos que transcendem a esfera da tipologia fundada pela semiótica (leia-se Charles Pierce, Saussure, entre outros). A imagem também integra em si questões epistêmicas sobre a memória. E, porquanto, prevalece a conceituação de Ana Luiza da Rocha e Cornélia Eckert, que considera os meandros das imagens do tempo como fornecedores de um conteúdo dinâmico da imaginação criadora (2001:p.20).
Partindo da sinergia entre imagem e memória, descortina-se a construção do olhar do artista. Ou seja, na profusão imagética de Eckhout se estabelece em seu estilo a dicotomia entre consciência do real (demonstrada pela estética realista) e os processos subjacentes de condução da imagem (velado pela personalidade autoral estilística). O que depõe para a necessidade de discutir os caminhos escolhidos por Albert Eckhout para investigar o Novo Mundo.
Nesse sentido, vejamos os significados da arte como mecanismo de expressão do que vemos, percebemos e sentimos no mundo. Partilhamos da noção formulada sobre arte por Luigi Pareyson, na qual a interpreta como conhecimento, visão e contemplação. E arremata o autor: “(…) O aspecto executivo e exteriorizador é secundário, senão supérfluo, (…) mas em todo caso, como visão da realidade: ou da realidade sensível na sua plena evidência, ou de uma realidade metafísica superior e mais verdadeira, ou de uma realidade espiritual mais íntima, profunda e emblemática” (1997: p.22).
Entretanto, vale lembrar que as inferências sobre a questão da arte são inesgotáveis. O decurso da arte como expressão poder-se-ia ser tomada pela vertente reflexiva de Geertz que alude: “as idéias são visíveis, audíveis (…) e tactíveis; que podem ser contidas em formas”. De certo, formas, segundo Geertz, que através delas permitem aos sentidos, às emoções, comunicar-se com elas de uma maneira reflexiva. Porém, no entanto, o mais pertinente é notar quando Clifford Geertz delibera a proposição que diz: “a variedade da expressão artística é resultado da variedade de concepções que os seres humanos têm sobre como são e funcionam as coisas”.
Nesse aspecto, a obra artística contém estruturalmente um estilo pelo qual o artista se exprime. Com efeito, quando a arte é autêntica e “funciona” enquanto linguagem, transmite-se acima de tudo o modo de conhecer e de interpretar o mundo, conforme teoriza Pareyson. Todavia, há fenômenos intrínsecos à elaboração da arte com relação ao envolvimento de fatores sociais, ora visto como determinismo, ora como condicionamento social. De acordo com o pensamento de Luigi Pareyson, há uma idéia que encontra semelhanças com o trabalho de criação de Albert Eckhout. Pareyson comenta que a arte, freqüentemente, revela um sentido das coisas. No entanto, as maneiras de representação demonstram uma nova faceta, com originalidade. Assim, a arte ensina novos ângulos para o olhar, o que implica em uma nova maneira de ver a realidade. “(…) E este olhares são reveladores sobretudo porque são construtivos, como o olho do pintor, cujo ver já é um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazer” (1997: p.25).
A princípio, o legado pictórico de Albert Eckhout desencadeia duas vigorosas proposições: uma, de que a imagem incidial é proposta pela observação participante do artista em seu meio no qual se encontrava, ou seja, pela racionalidade em estabelecer um forma para a sua visão de mundo. A outra, volta-se para a idealização produzida pelo ato de criação, no qual se obtém a intencionalidade do olhar, a construção de uma imagem-conceito que se configura a partir dos nativos brasileiros.
Tomando como parâmetro estas duas interpretações acerca do estilo eckhoutiano, consideremos que a dualidade é um fato norteador em sua produção. Pois, ao analisar o segmento dos esboços na obra de Eckhout, percebemos traços edificantes do conjunto de seu acervo. Paralelamente às pinturas em telas (de dimensões maiores), os esboços tratam-se de fragmentos visuais, resquícios da memória, do exercício em “resolver” formalmente o outro. No entanto, ao passo que denotam a natureza testemunhal da cena, o personagem também é transformado e condicionado através de símbolos.
Quando, sobretudo, nos reportamos à disposição de símbolos, vale frisar que eles são velados, discretos, surgem como epílogos fugidios da memória, escapam da rápida percepção. Afinal, tais símbolos formam a imagem nas entrelinhas, sendo muito mais reflexivos do que incisivos. De tal maneira, que os esboços dos retratos de indígenas tecem, em camadas, as sensações humanas. Logo, a descrição etnográfica compartilha da leitura autoral – esta responsável pela intertextualidade entre objeto apreciado e objeto criado pictoricamente.
Os esboços sintetizam as proposições imagéticas anteriores e caracterizam-se pela ruptura de estilo. A analogia desta análise remete ao conteúdo da forma existente nas imagens criadas pelos pintores europeus, ora viajantes, ora inspirados por relatos de viagens. A fruição plástica que encontramos em ambas são diversas e distintas. O ícone é formado através de uma leitura visual calcada em metáforas figurativas. Neste sentido estilístico, ocorre o estereótipo das diferenças culturais, especificamente as que exaltam eurocêntricamente o hábito antropofágico.
Em contrapartida, os esboços de Albert Eckhout isolam o objeto e tenta recompor as camadas constitutivas da representação em questão. A maneira como Eckhout define os elementos (signos) pictóricos é um fator de relevância para sua comunicação visual efetiva. Ao delinear a forma com o propósito de apreender os contornos “reais” da figura, o realismo suplanta a disposição alegorizante sobre o outro. Os esboços, nesse sentido, ilustram a tendência do pintor em descrever e revelar o objeto de apreciação. Seu processo pictórico o leva de encontro ao conteúdo etnográfico. Pois, concomitantemente na busca pela expressão precisa do personagem, o sistema de signos constroem-se e edificam-se por meio do realismo figurativo.
Clarival do Prado Valladares analisa o estilo eckhoutiano, de maneira, que o coloca como fundador de uma linguagem estética original e contrária às dissimuladas projeções etnocêntricas da produção imagética anterior a de Eckhout. Valladares considera o estilo eckhoutiano como rigidamente documental. “(…) Sempre utilizando seu bom conhecimento da pintura para compor, para conduzir o seu documento ao nível de um propósito estético, sob ordenação plástica. Esta implicação de atributos estéticos elevam o pintor-documentador ao reconhecimento de um inovador da pintura da escola holandesa, por conseguinte um renovador de estilo” (1989: p. 21).
Albert Eckhout – Esboço de Mulher Tapuia adormecida
No tratamento cunhado aos esboços por Eckhout identifica-se mais diretamente à pureza dos corpos vinculada ao Renascimento. Entretanto, essas referências estéticas discutidas aqui promovem uma visão estilística que, no entanto, desenvolve outras matrizes fundantes da criação eckhoutiana. É exatamente através da análise dos esboços que sobressai-se, por conseguinte, o modo como se estrutura a densidade da figuração dos retratos etnográficos. É inevitável fazermos uma ligação interdisciplinar com o campo da estética, pois a etnografia praticada através de imagens desenvolve um diálogo pertinente quanto à questão da prática de construir essa imagem. Também é significativo expor que Luigi Pareyson define a forma como sendo uma matéria formada, assim como o conteúdo o modo de formar aquela matéria. Nesse sentido destaca a relevância dos graves sentidos das inflexões formais, “estendendo o dever e a capacidade de exprimir e de significar a todos os aspectos da obra, dos assuntos aos temas, das idéias aos valores formais, todos igualmente resultantes dos gestos operativos do estilo” (1997: p. 63).
A priori, o estilo apreciado nos desenhos (esboços) de Eckhout demonstra a consciência sobre o modelo que posa à sua frente. Consciência esta, que promove a realização da contemplação diante dos detalhes étnicos do outro, bem como o testemunho documental de algo, embora volátil de se traduzir em imagens e de cunho abstrato, como captar a humanidade do referente sobre o qual o pintor apropria-se. De tal modo, corresponde a um dos aspectos mais marcantes do trabalho de Eckhout : a expressão facial.
As imagens eckhoutianas ratificam que forma e conteúdo são homólogos. A misoginia e a posição androcêntrica recorrentes no processo europeu de colonização, não encontra nessas imagens a mesma vitrine que fora utilizada para manutenção de interesses e aventada repressão do maior obstáculo de exploração: os nativos brasileiros, donos da terra invadida. De modo que, desprovidas de criações fantásticas, os retratos etnográficos tornaram-se referências na busca pela identidade do outro, pela precisão de estilo que indica as mais sutis diferenças culturais e étnicas. Sobre este último aspecto, Albert Eckhout desmistifica os falsos mitos (do selvagem e nocivo) e desvela os traços singulares dos Tapuia com naturalidade, sem maniqueísmos e alegorizações.
Ao considerar que, o estilo de quem recompõe visualmente um contexto cultural, é responsável pela construção simbólica e seus respectivos valores com relação à imagem de quem foi retratado, faz-se necessário discorremos sobre esse processo nos retratos etnográficos produzidos por Albert Eckhout e suas nuances na construção sobre o outro antropológico.
Em Esboço de Mulher Tapuia Sentada (s.d.), Esboço Tapuya (s.d.) e Esboço de Homem Tapuya, Cabeça e Ombros (s.d.) estabelece-se uma não-ingerência conceitual predominante, direta ou arbitrária por parte de Eckhout na elaboração desses retratos. Os semblantes dos indígenas retratados perfazem significados que ora condizem com sensações de tranqüilidade, melancolia, espírito desbravador, entre outras possíveis interpretações. Isto é, são homens que detêm sentimentos humanos universais, ao contrário do enfoque imagético cunhado em categorias como seres exóticos e procedentes de um sociedade subjugada como primária. Esta aludida iconografia dos viajantes, encontra-se inserida no âmbito comparativo do evolucionismo das raças (e por conseguinte das sociedades), pensamento europeu balizador e constituinte dos séculos XVI e XVII.
Ao refletirmos sobre as vertentes que permeiam o domínio da imagem sobre o outro no período colonial, é pertinente retomar a obra de Eckhout para análise. Pode-se concluir que os retratos desse artista não são adaptados a uma narrativa manipulada que distorça seu referente. Embora, seja possível fazer um recorte plausível e verossímil da realidade, não obstante verifica-se a possibilidade de transmitir o tão evocado realismo etnográfico sob o olhar de Albert Eckhout, que em si mesmo é seletivo e sensível em “deslocar” a realidade para o plano bidimensional da pintura ou do desenho. Nesse sentido, poder-se-ia concluir que Eckhout também transforma a percepção imagética. Mas, todavia, detendo outros códigos constituintes de sua mensagem visual.
Os meandros da construção plástica do século XVII fora discutido pelo teórico Raymond Bayer. Segundo Bayer, o pintor Poussin (1594-1665) deixou cartas, as quais não chegam a ser um tratado de estética, mas são sem dúvida seu “testamento artístico”. Dentre suas reflexões destaca-se a que diz: “(…) A verdade é acima de tudo a natureza, o que se encontra diante de nós, essa natureza que a concepção racional modifica, embeleza, escolhe, afastando tudo o que não se presta à ordem, evitando o complexo, enquanto que a verdade propriamente dita exige a natureza total” (1978: p. 141-142).
Diante disso, nota-se correlações com a produção de Eckhout porque há a sensação de imanência nos objetos pictóricos sob a exegese de Eckhout. Seria como dizer que o artista holandês buscava o “ser sob as aparências”. Esta expressão integra uma corrente (doutrina seguida por Platão, Plotino, Schelling, etc.) que argumenta sobre as leis imanentes nas coisas que o artista deve seguir. No entanto, a proposta plástica realizada por Albert Eckhout sugestiona suas impressões do local, das relações sociais e detalhes culturais, mas acima de tudo trabalha o realismo naturalista em sinergia com sua intuição sobre os códigos representados.
Todavia, essa reflexão sobre os procedimentos artísticos e a construção da imagem, resultante em campo imagético de investigação, suscita vertentes ligadas à solidificação da imagem como conteúdo etnográfico. Nesse âmbito, a discussão sobre a concepção da imagem é tão enriquecedora quanto a leitura desta. E, quando observamos o vínculo entre material iconográfico e seu correspondente estilo ou intuição do artista, estamos acompanhando o sistema de criação da imagem, que também abrange a produção e as influências sócio culturais externas.
Por fim, poder-se-ia avaliar a antinomia existente nos termos realismo e transformação como sendo parâmetros artísticos trabalhados pelo artista holandês e que, por conseguinte, propiciam um contexto visual dicotômico como processo analítico da construção do olhar. Ao distinguir que a interação do estilo artístico é, a posteriori, um elemento decisivo para a significação de quem decodifica a imagem, deve-se levantar também o pressuposto sobre o qual a mensagem torna-se efetiva de acordo com a ênfase estabelecida pelo artista.
Provavelmente, as inferências ligadas ao artista são baseadas em sua concepção de mundo – daí surgindo uma “etnografia” inconscientemente arbitrária. Mas, sem contudo destituir-se de autenticidade no olhar. Frágil seria, se considerássemos a inexistência e a impossibilidade de tomarmos as imagens como fontes aparentes de significados; e não, como imagens constituintes de princípio essencialmente midiático e gestor de mensagens subjacentes. O antropólogo Nuno Godolphim salienta que a apreensão das mensagens de caráter etnográficas por registros de imagens “não está na imagem em si, mas no imaginado, na trama intersubjetiva dos imaginários que se encontram. No que imaginamos antropologicamente ser as categorias do imaginário do outro” (1995: p. 141).
A contemplação da pintura, como suporte para o saber antropológico, guarda as diversas evidências e os mais obscuros símbolos. Pois, a inflexão elaborada pelo pintor Albert Eckhout precede o objeto representado e ajuda no processo de construção da imagem. Desse modo, o processo da alteridade entrelaça-se ao estilo pictórico de Eckhout e redimensionam a concepção visual das diferenças étnicas e culturais. Logo, os retratos dos nativos brasileiros tornaram-se documentos etnográficos do Brasil holandês, que num misto de ciência e arte projetam a visão do outro sobre o Novo Mundo. E, sobretudo, promovem a pesquisa sobre a identidade e formação do povo brasileiro através de uma fruição estética que transcende a beleza da forma e nos impulsiona para o conteúdo e seus diversos significados culturais.
Referências Bibliográficas:
BAYER, Raymond. História da Estética. Tradução José Saramago. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
GODOLPHIM, Nuno. A fotografia como recurso narrativo: problemas sobre a apropriação da imagem enquanto mensagem antropológica. In: Horizontes Antropológicos: Antropologia Visual. Org. Cornélia Eckert e Nuno Godolphim. Porto Alegre, n.2: 125-142, 1995.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução de Maria Helena Garcez. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho de e ECKERT, Cornelia. “ Imagens do tempo nos meandros da memória”. In: Imagem e memória: ensaios em Antropologia Visual. Org. Mauro Guilherme Koury. Rio de Janeiro: Garamond,2001, p.19-39.
VALLADARES, Clarival do Prado e MELLO FILHO, Luiz Emygdio de. Albert Eckhout: A presença da Holanda no Brasil – Século XVII. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989.
*Publicado na revista Continente em setembro de 2002.