A estética do olhar vazio

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Todos indicavam um vazio imenso, mas não havia como fugir disso. Todo e qualquer olhar é irrefutável, disso não tenho dúvidas. Não será por isso que, quando queremos ou precisamos fugir da verdade, não olhamos para o outro? O certo é que todos fixavam o olhar em mim e eram muitos, de crianças, homens e mulheres, uns mais jovens, outros bem mais velhos. Nada mais doloroso que buscar a essência de uma pessoa e depararmos com a letargia avassaladora de quem pode trazê-la até nós. Continuei tentando, sem sucesso algum, encontrar o equilíbrio, dedicar mais atenção, dar tempo ao tempo e retomar o diálogo visual. Ilusão a minha.

Inacreditavelmente, o estranho que não conseguia circular naquele mundo distante de territórios empoeirados, áridos, cuja luz solar causa certa cegueira momentânea, era eu. Visivelmente, perambulando por espaços etíopes, de uma África vibrante. As pessoas pareciam questionar a minha presença. E eu atônita caí na armadilha de levar a sério certa idéia que se apresentava para mim rarefeita, perdida, sem esteio… Por fim, senti uma solidão inefável. Pois, as fotografias que poderiam me transportar magicamente ao encontro de outros povos, etnias ou, simplesmente, pessoas plasmaram o inverso. Deslocou-se para minha contemplação um mundo exótico, diverso, profícuo de significados culturais que, ironicamente, conotava-se falso, frágil e pueril.

Cadernos Etíopes, livro recém lançado do fotógrafo J.R. Duran, sintetiza tudo isso. Sua idéia de registro documental e social, fortemente guiada pela pretensão da perspectiva antropológica, esvai-se a cada página. Apesar de saber que o olhar apreendido pela fotografia é subjetivo e envolto em aura intangível – porém poética e sensível – questiono o porquê deliberado de causar impacto através do exotismo corporal se o próprio realismo fotográfico se ocupa disso. A beleza plástica é atemporal e imutável. Assim, deparar-se com a estetização do olhar vazio é como cair em um precipício de ausências.

Não há sentido, razão de ser, fazer retratos de outrem e expurgar o quão denso e profundo é esse processo simbólico. Talvez tal engano ocorra devido a dois campos fotográficos que para alguns preconizam o valor dos objetos fotografáveis: o do realismo documental social em contraponto às fotografias publicitárias, de moda e de nus. Nesta dialética, o olhar de J.R. Duran (renomado fotógrafo de nus e moda) parece querer legitimar sua escolha e transição em relação à temática de retratos de grupos étnicos da Etiópia. No entanto, ao lançar mão de recursos que remetem diretamente ao fazer etnográfico como os diários de campo e de viagem – cujos relatos são teoricamente anotações feitas na atmosfera efêmera, porém contundente da realidade vivenciada –, Duran deixa claro sua percepção volátil e a ausência de esforço em praticar a alteridade. Sem ela, a aproximação e o confronto de identidades (entre fotógrafo e fotografado) não fluem intuitivamente, promovendo o que poderíamos chamar de diálogos imagético-metafóricos.

Indicado no próprio texto do livro como um trabalho simples, despojado e construído, paradoxalmente, o que vemos é uma seqüência monótona de retratos que perfilam a curiosidade pelo exotismo, pela plasticidade formal que possa deter o belo. E nesse caso, não se vislumbra a pureza da sinceridade que advém do ato de fotografar o outro. Não importa de onde venha o pedido ou desejo pela fotografia final. Deveríamos repensar alguns estatutos, pois a beleza sensível da imagem fotográfica não se restringe à perfeição ou sensualidade de quem se apresenta no registro, mas sim como se “processa” o encontro desta captura: a maneira, a aproximação, a emoção canalizada neste tempo (que, este sim, é essencial ao ato fotográfico) e espaço.

Os relatos do próprio Duran nos dão pistas do seu olhar estrangeiro. Ele mesmo nos revela o que já desconfiávamos: um fotógrafo pouco a vontade, sem saber muito bem porque vai ao encontro daquela aventura fotográfica. Dentre seus questionamentos, escreve: “O que estou fazendo aqui? (…) Para que desaparecer em algum canto do mundo? Não podia ser em St. Barts, Montecarlo ou Dublin? Por que a Etiópia? De vez em quando é bom se perder com a certeza de que é possível voltar para casa. Se perder para sentir saudades. (…) Para encarar desafios numa terra desconhecida. Se perder na procura da foto perfeita”.

Em Cadernos Etíopes, a vulnerabilidade de J.R. Duran é contundente. Nitidamente inclinado a mostrar um tipo de trabalho maduro, sério, pretensamente antropológico, tenta ser reconhecido pelo gênero documental da fotografia que, em sua concepção idealizada, estaria inevitavelmente em plagas distantes, inóspitas e com pessoas bem, mas bem diferentes das do seu métier. Suas imagens estão simbolicamente enclausuradas, não respiram atreladas ao seu estilo estetizante. Assim, deslocado no propósito, um forte etnocentrismo paira no ar… As imagens em preto e branco são indefectivelmente impregnadas do glamour-fetiche, da sensualidade potencializada dos corpos (principalmente femininos) que permeiam sua trajetória profissional.

Sob a intencionalidade, de registrar identidades, particularidades étnicas, fica a experiência titubeante sobre um fotógrafo que, como disse Augusto Massi, no posfácio do livro, “persegue, tanto do ponto de vista pessoal como da cristalização de uma linguagem”, o momento significativo da síntese. Para nós, fica a vontade de inserir-se na maturidade da fotografia documental e social, além do reflexo da bricolage estereotipada do próprio estilo duraniano. Além de poses cartesianas, ficam as barreiras translúcidas da estetização do olhar vazio em cada rosto retratado. Uma pena. Atingir a essência dessas pessoas, esta sim, deveria ser a verdadeira aventura fotoetnográfica sem volta. Assim como o fez, Pierre Verger em sua extensa e sublime jornada imagética.

* Resenha publicada no Pernambuco – Suplemento Cultural (dezembro de 2008) sobre o livro Cadernos Etíopes, do fotógrafo J. R. Duran.

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