Atmosfera do inexistente

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paula-sampaio-WEB-01Imagens do livro O Lago do Esquecimento de Paula Sampaio.

Atmosfera do inexistente

Georgia Quintas.

Após a experiência de ler e ver o livro O Lago do Esquecimento (2013), da fotógrafa Paula Sampaio, busquei um outro livro em minhas estantes. Recordava palavras do doutor e escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904). Por estas imprevisíveis conexões, coloquei alinhados em minha percepção dois mundos absolutamente longínquos, absolutamente reveladores. Por isso, preciso começar este texto transcrevendo uma ínfima, porém intrigante, parte da peça A Gaivota (1896), de Tchekhov.

Trata-se do diálogo entre dois personagens:

Nina: É difícil representar a peça que você escreveu. Não tem personagens vivos.

Trepliov: Personagens vivos! Não se deve representar a vida do jeito que ela é, nem do jeito que devia ser, mas sim como ela se apresenta nos sonhos.

Nina: Na sua peça há pouca ação, é só declamação, do início ao fim. E, para mim, uma peça precisa ter amor…

De certa maneira, a licença poética permite esse encontro entre a palavra de um e a escrita visual do outro. Precisamos desta sensação limítrofe de uma obra tocar a outra, de revermos representações pelos seus fenômenos de atuação. Digo isso, pois uma pesquisa visual tangencia não só e tão somente o tema, o assunto, a ideia. Aborda também a sensibilidade do fotógrafo em perceber a transformação do objeto a ser narrado pela fotografia em sujeito ativo, que discursa por si mesmo, que torna-se protuberante pelo que se constrói ao longo do tempo de impregnação sobre determinado contexto. No caso de Paula Sampaio, o lugar estudado transborda a invisibilidade, o isolamento traiçoeiro da ação humana em um ecossistema vívido antes e paralisado agora. A fotografia de Paula revela a história de Tucuruí, região do Pará que fora mergulhada por ocasião da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (décadas de 1970 e 1980).

A pesquisa O Lago do Esquecimento, de Paula Sampaio (mineira radicada em Belém), nos coloca diante da reflexão sobre a propensão em narrar a transformação dos lugares, a insensatez humana, o silêncio do que se fora e dos que persistem em ficar. Porque precisam de chão, porque há de se plantar e pescar, seja para viver, seja para conseguir dormir. Para estes, a esperança salva a noite para ver o alvorecer.

O trabalho da Paula, persiste por isso, pela voz abafada das histórias de vida que barafustadamente vagam por aquelas águas. Durante cerca de três anos, Paula viajou em pequenas embarcações durante horas para encontrar tal cenário mítico e desolador. As imagens passam a ser atitude em inventariar o que não se vê. O lago, elemento de protagonismo deste ensaio, nos atinge pela dramaticidade e melancolia. O silêncio da paisagem parece nos ensurdecer, parece nos trazer a atmosfera do inexistente. Ao revelar-se como numa miragem, somos obrigados a enxergar o não visto; troncos, pedaços finos de vegetação surgem como almas a recorrer uma possível salvação, não do purgatório, mas de um limbo sufocante que sequer permite indicar sua ruínas à memória. Casas, coisas, plantios e animais foram engolidos, e as pessoas deslocadas de seu território.

O expressionismo preto e branco de Paula Sampaio enfatiza esse horizonte: o cenário do nada que esconde cenas sepultadas de histórias de gente. É um ensaio arrebatador esteticamente que ganha potência pela proximidade de escolha por formas improváveis. De organismos ora abstratos ora mutantes, a paisagem de Paula desvela-se aos poucos num mundo de estranhamento, em antítese à realidade que os fatos julgam possuir. Há de considerar que é justamente neste ponto entre o documento e projeção simbólica que emerge a retórica desta fotógrafa. Sua poética promove o debate sobre o conceito de horizontalidade do olhar quando posto diante da natureza. Isto é, podemos exercitar a reflexão sobre esse domínio, digamos, natural de registro. O Lago do Esquecimento provoca portanto, desse modo, a fresta que exige ao olhar ir além da contemplação, de divagar a paisagem enquanto arqueologia de histórias, de tempos suplantados e por hora suspensos, o qual devem encontrar o tempo de suposição do outro.

Entretanto, o livro O Lago do Esquecimento (contemplado com o XII Prêmio Marc Ferrez de Fotografia) referenda não só a imagem de um espaço, mas também a vida que restou, através do primoroso registro oral com parte da população remanescente da área (cerca de 6 mil habitantes). São falas que recuperam lembranças, fatos, impressões do represamento de águas do rio Tocantis que provocou artificialmente o lago do Tucuruí. Paula foi generosa com quem lhe contou as “verdadeiras” histórias. Como uma antropóloga, guardou e editou diversos relatos para o seu livro. O silêncio sentido pelas imagens é rompido por palavras, pelo ritmo de quem narra a memória para explicar o que restou – como epígrafes do que se fora. As imagens e os relatos passam a constituir mutuamente drama e colisão, passado e sobrevivência, cansaço e sofreguidão, descaso e esquecimento. O Lago de Esquecimento conta também com textos primorosos do jornalista Adolfo Gomes, da historiadora Rose Silveira e do escritor Pedro Afonso Vasquez, os quais acrescentam contextualizações e reflexões relevantes para a problemática sócio-ambiental tratadas no livro.

O trabalho de Paula Sampaio nos desorienta, embrulha nosso contexto urbano tão prático e ordenado, assim como o imaginário. Mobilizada desse modo nosso olhar e percepção para a possibilidade da existência de 1.100 ilhas (formadas após o represamento), do isolamento de seus habitantes, da restrição de deslocamento, cuidados e visibilidade. Embora, a fotografia não mostre diretamente essa gente, várias vozes literalmente compõem esta pesquisa. Paula indaga o esquecimento pelo e sobre o ser humano; fricciona um lugar (quase fantástico por sua intangibilidade) com a desconcertante invisibilidade de uma população que luta para não fossilizar-se. Pessoas que catam peixes, para seguirem. Sem desvanecerem-se, ao menos, pelas páginas desse livro.

* Texto originalmente publicado no site do 3º Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo, 12 de outubro de 2013.

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