Este segundo perfil escrito pelo jornalista Moracy Oliveira para o Olhavê é com um dos mestres da fotografia brasileira: Carlos Moreira. Sem dúvida, começamos o ano bem!
O primeiro post de 2014 (entrando no sétimo ano do Olhavê) com Moreira e Moracy é a consolidação do que queremos para o blog: conteúdo, relevância, memória e uma Fotografia sem discurso palavreado, mas com muita paixão e seriedade.
Moracy Oliveira foi editor das revistas Iris e Fotoptica (1977 e 1982) e crítico de fotografia do Jornal da Tarde (1975 e 1990). O primeiro perfil foi com Penna Prearo e você pode conferir aqui.
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Bom ano para todos e espero contar com a visita de vocês.
Alexandre Belém e Georgia Quintas.
Observando, revelando e se revelando.
Por Moracy Oliveira.
O ano era o de 1964. A idade, 28. À frente, o céu não era de brigadeiro.
De um lado, um currículo precário que registrava as primeiras fotos, os elogios e incentivos feitos pelos colegas, as sessões inspiradoras do cinema de Fellini e Antonioni no centro da cidade.
De outro, registros de uma vida sem rumo definido, errática, e passagens, como funcionário, pelo IBC – Instituto Brasileiro do Café, por uma subgerência em empresa de máquinas operatrizes. No bolso, um pouco estimulante diploma de economista.
No meio, Carlos Moreira e a necessidade de escolher o seu campo de pouso. Estava na hora, era um adulto. Economia não lhe interessava. Mas havia o medo da aterrissagem, as incertezas do futuro, a pressão familiar que não cedia, o homossexualismo camuflado socialmente, e o desejo de ser livre para encontrar-se consigo mesmo em alguma atividade. Escolha difícil, definidora, vital. Era seu momento decisivo.
Optou pela fotografia.
Nunca se arrependeu. Libertou-se. Nos últimos 50 anos fotografou diariamente. E continua fotografando todos os dias. Sem pressa. Observando, revelando e se revelando. Sempre, ou quase sempre, na cidade de São Paulo. Sempre, ou quase sempre, no centro da cidade de São Paulo.
Já são cerca de 700 mil imagens entre analógicas e digitais. Arquivos de aço, caixas e computador guardam esses registros. A maioria não catalogados, desorganizados, embalados em sacos plásticos, para desespero silencioso de Rosely Nakagawa, curadora às vezes, gestora outras vezes, conselheira e amiga de sempre, e Regina Martins, fotógrafa, sócia, amiga e escudeira fiel desde os anos 80.
– Há ali um recorte de 50 anos da cidade de São Paulo . É também uma fotografia documental mas de caráter poético, pessoal, diz Rosely.
Desde o início, Moreira atua num território próprio, mas sem amarras. Um clássico. De caminho pessoal construído sem pressa através dos anos. Distante das fronteiras semoventes das artes contemporâneas onde a fotografia se inclui. Fronteiras que, quando incertas, já ensinavam os bons e velhos faroestes, são habitadas por pioneiros e malfeitores, nem sempre se distinguindo uns dos outros.
Mesmo sendo um clássico, ele não deixa de ser contemporâneo. À sua maneira. Silencioso, mais distante da cidade. Hoje revisitando e desconstruindo suas memórias e intimidade para reconstruí-las, visceralmente associadas e interligadas, em novas fotografias. A família, as paixões, o que não se revelava, se embaralham agora em imagens únicas, em fotomontagens, num movimento inverso ao anterior, quando seu olhar se dirigia para fora. Agora, olha para dentro e encontra na sua paisagem interior, na sua história, a verdade da sua fotografia.
Porque em Carlos Moreira é assim: não é a técnica, não é a estética o que define a fotografia. O que define a fotografia é o que ele chama de “eu profundo” do fotógrafo, os olhos interiores que não apenas enxergam, mas se enxergam e se projetam naquilo que estão vendo, identificando e se identificando com as imagens que captam.
– Esqueçam a estética, fotografem com o coração, com a alma – recomendou a seus alunos em um final de uma longa aula em que, usando sua extensa biblioteca, havia feito a leitura de vários fotógrafos, mostrando como cada um deles se projeta nas fotos que faz.
Mas é necessário certa prudência diante dessa orientação. Para Moreira, a estética a ser esquecida é a descartável, estéril, impessoal, cheia de artifícios, que se não subtrai, nada acrescenta. Conselheiro, indica ao alunos que, no início, copiem os fotógrafos que gostam. Copiem até chegar ao ponto de entendê-los, de descobrir o porquê suas imagens são daquela e não de outra forma, até visualizar o homem, as emoções e história que estão por trás daquelas fotos que procuram imitar. Ao entender isso, afirma, estarão prontos para se libertar da cópia e desenvolver o seu próprio estilo, a sua própria visão, e o que é o mais importante, estarão prontos para contar a sua própria história através da fotografia.
Carlos Moreira, claro, está falando dele mesmo quando fala aos seus alunos.
Um Quarto Escuro no Copacabana Palace
A fotografia e ele se cruzaram pela primeira vez quando não tinha ainda 12 anos. O encontro veio através de um primo que possuía uma câmera. E a primeira vez o deixou fascinado. O menino introspectivo, curioso, aprendeu então o que era profundidade de campo. Era uma coisa técnica, baseada na ciência. E ele entendeu e gostou de aprender isso, mas ainda não a ponto de enveredar pela fotografia. Ficou com uma certeza, aquela que se torna o mantra de todo fotógrafo: aprendeu que fotografar não era só apontar e disparar.
No segundo encontro a curiosidade levou a uma prática. Foi por volta dos seus 16 anos. Comprou um kit revelação composto por banheiras, pinças, revelador e fixador que, não lembra ao certo, vinham em saquinhos para serem diluídos e preparados. Junto, um papel de baixa sensibilidade para contatos. Entusiasmado, arrumou lugar para o kit na bagagem que levaria ao Rio, em companhia dos avós, para uma temporada carioca no Copacabana Palace. Lá, armado de uma Contax 6×9, fotografava a família, os passeios e mandava revelar o filme. Enquanto celebridades da época devastavam o estoque de Dom Pérignon a beira da piscina, ouvindo Ivon Cury, ele fazia os seus contatos no quarto do hotel.
Apesar da curiosidade e da euforia inicial, fazer contatos foi uma prática que não levou adiante nem mesmo depois. Já fotógrafo, salvo raras exceções, nunca fez contatos de seus filmes. Nem mesmo muitas ampliações. E quando fazia, a escolha da imagem a ser ampliada era feita apontando a tira do negativo para uma fonte de luz.
Tanto é assim o seu comportamento que só agora os seus 80 mil negativos em preto e branco, os únicos nessa situação, estão identificados e com os contatos devidamente feitos. E isso se deu graças ao trabalho de três ex-alunos e admiradores confessos. Primeiro, Firmino Mariano e Lúcia Mindlin, dedicaram um dia de suas semanas, por alguns meses, a embalar os negativos em “printfiles” para facilitar o trabalho dos contatos. Em seguida entrou em cena Luciano Oliveira que, num período de quase dois anos compareceu semanalmente ao laboratório com a missão auto imposta de realizar vinte folhas de contato a cada visita. Cerca de 120 mil negativos coloridos e 500 mil arquivos digitais esperam sua vez.
Fotos: Carlos Moreira – Anhangabaú, anos 60
Sem Rumo: do Mackenzie a Miami. E de Miami a Maria Antônia
Filho de médico e neto de fazendeiro, Moreira nasceu junto a Avenida Paulista, na Rua Frei Caneca, na extinta Maternidade São Paulo. Morou no Centro, na Avenida Ipiranga, em frente ao que é hoje o edifício Copan, e depois nos Jardins, bairro onde viveu sua adolescência e boa parte da juventude. Desse período, lembra o gosto por livros de aventuras, por histórias passadas na África, por Rudyard Kipling, por aparelhos e máquinas e por gibis, a ponto de lembrar-se do Capitão Marvel entre heróis como Fantasma, Mandrake, Tarzan. Publicado nos anos 40, Capitão Marvel era o dublê de Billy Batson, personagem que se transformava num poderoso super-herói ao ser atingido por um raio após gritar a palavra Shazam. Atropelado por acusação de plágio do Super-Homem, caiu no ostracismo, mas não se perdeu na memória do fotógrafo.
– Eram leituras que me faziam viajar, sonhar, provocavam minha imaginação, diz ele.
Desse tempo é também presente, e com marcas na sua fotografia atual, voltada mais para memórias, objetos, interiores, do que para a rua, a lembrança da avó a quem atribui uma forte influência sobre sua personalidade entre os 8 e 18 anos. Ela havia estudado pintura na Itália e embora tenha feito alguns quadros, um deles hoje em seu estúdio, não chegou a se desenvolver como pintora. Mas tinha a cultura, a educação mais refinada e era ele quem lhe fazia companhia durante as viagens do avô. Na casa dela tinha longas conversas e podia ler enciclopédias e os livros da coleção Obras Célebres que ela mantinha perfilados num móvel baixo, as capas de couro com os títulos escritos em letras douradas. Gostava disso. Alguns objetos e móveis que pertenceram a ela decoram hoje seu estúdio na Barra Funda.
O mundo que se abria a curiosidade do adolescente, embora impregnado das aventuras lidas, não era suficiente para amenizar os problemas que começavam a lhe afetar, causados por uma sexualidade clandestina e socialmente reprimida como doentia. Aluno do Mackenzie, foi se recolhendo, se distanciando da turma, vivendo um autoexílio dentro do grupo. As notas despencaram e vieram as reprovações de ano. Já frequentava o centro da cidade onde alternava caminhadas com sessões de cinema em que via de Fellini a Mazzaropi. Só não podia, como Billy Batson, gritar Shazam, se transformar em Capitão Marvel, e sair voando para longe dos seus problemas.
Mas aos 18, aventureiro, podia e lá estava ele voando no Campo de Marte, aeroporto urbano, junto ao rio Tietê, na zona norte de São Paulo, pilotando um teco-teco, mono motor de pequeno porte, e tirando seu brevê de piloto. Não satisfeito, corria para os campos do Butantã, atual Cidade Universitária, para também pilotar planadores, pequenos aviões sem motor, que se mantêm suspensos devido a correntes atmosféricas.
Ainda aos 18, a decisão: contou ao pai sobre sua homossexualidade. Recebeu como resposta um “isso passa” e uma passagem, dois anos depois, para os Estados Unidos, terra que, na época, tinha John Wayne como seu símbolo de masculinidade. O pai, médico e professor universitário, zeloso da presumida importância de um sobrenome herdado de família tradicional do sul de Minas Gerais, não podia aceitar essa realidade. Nos dois anos seguintes a relação pai e filho foi de conflitos e dramas.
Aos 20 embarcou para Miami num bonanza, um monomotor pilotado pelo primo Renato Pedroso. Um mau tempo interrompeu a viagem em Georgetown, nas Guianas, mas não tirou a sensação de liberdade que ele começava a sentir ao se afastar de casa.
Em Miami o destino era uma curso de engenharia, que até foi começado e logo abandonado, trocado por outro, de psicologia, que também ficou pelo caminho.
Era difícil estudar na praia.
– Sol, praia, mar. Reconquistei meu espaço pessoal, confessa, garantindo que os três anos passados em Miami, foram muito felizes. E nisso tem papel especial Salvatore Luigi Messina, amigo e companheiro de moradia, que conheceu lá mesmo.
Foi Salvatore quem chamou a atenção para uma sensibilidade especial que ele demonstrava em desenhos que vivia rabiscando. Ex-vestibulando de Arquitetura no Mackenzie, gostava de desenhar e tempo era o que não faltava. Salvatore percebeu e começou a incentivar. Um dia chegou com um presente, o Moby Dick, de Hermann Melville, um livro de aventuras e descrições fascinantes que povoou sua imaginação de imagens que o levaram a desenhar cada vez mais. Como consequência passou a se interessar de fato por pintura e por todas as manifestações das artes plásticas. Sem muita frequência, continua a desenhar até hoje. De Salvatore guarda a edição de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ganho na despedida de ambos.
É nessa mesma época que outro amigo, diretor de uma pequena companhia de ópera o levou a Nova Iorque onde assistiram a La Boheme, de Giacomo Puccini, uma história de artistas e pessoas comuns vivendo numa Paris do final do século 19. Moreira lembra até hoje da beleza do espetáculo e da emoção de ver e ouvir a soprano Renata Tebaldi, considerada ainda uma das mais completas do canto lírico.
Fotografia nesse período? Uma câmera Stereo Realist de duas objetivas, que permitia fotos 3D, e uma tentativa, logo abandonada de fazer cinema com uma Paillard Bolex 16 mm. E nada mais. Vivia livre, longe das cobranças e pressões e próximo de uma vida alimentada pela cultura, cinema, artes e diversão. Não havia um compromisso a cumprir.
A experiência americana lhe deu uma certeza: queria viver lá. Conseguiu um green-card e após passagem rápida por São Paulo, estava em Nova Iorque. Mas desta vez a cidade era outra, o ambiente era outro e seis meses depois, logo após receber uma convocatória para um exame médico classificatório para o exército americano, estava de volta, em definitivo, para um curso de economia e uma passagem pela Filosofia da Universidade de São Paulo. Economia ele terminou, Filosofia, não. Ao ser indicado para fazer um seminário oral em uma das matérias, sua timidez venceu e ele nunca mais voltou a faculdade. Mas levou um troféu que carrega pela vida inteira: a amizade de Rita Toledo Piza, a primeira a incentivar a sua opção pela fotografia.
Os Quatro Erres
Opção feita pela fotografia, a vida tomou um rumo. E logo vieram as exposições e o reconhecimento do seu trabalho. Sua exposição no MASP – Museu de Arte de São Paulo, em 1978, a primeira em um espaço institucional nobre, já que vinha mostrando suas fotos em circuitos mais alternativos, é uma confirmação disso.
– Peguei minhas fotos, tomei coragem, e fui ao MASP. Primeiro mostrei ao escultor Dan Fialdini, na época um assessor da direção. Ele gostou e levou ao Bardi. Ganhei uma exposição com 80 fotos ocupando o salão do subsolo do museu.
Depois vieram mostras na Fotogaleria Fotoptica, no MASP novamente, na Pinacoteca e diversas outras, que podem ser conferidas no seu site www.carlosmoreira.com.br
Além de fotografar diariamente, Moreira também começou a ensinar fotografia. Em 1971 conseguiu um emprego na ECA – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, primeiro como técnico em laboratório e logo em seguida como professor. Foram 20 anos ensinando. Mas as turmas cresceram, chegou a ter 200 alunos, os anos passaram, o cansaço chegou. Em 1990 deixou a USP e junto com Regina Martins criou a M2 para dar cursos independentes, orientar grupos de estudo, fazer palestras.
Moreira é econômico na sua história: “Eu poderia resumir minha vida na fotografia em quatro erres”, garante.
R de Rita Toledo Piza. Artista, professora, fotógrafa, é dela o maior incentivo inicial para que se torne fotógrafo. Após ver algumas de suas primeiras fotos, bem impressionada ela pergunta: “são suas”? Além do empurrão inicial, que, confessa, pesou na sua decisão, é ela quem está na origem, escolha das fotos e edição de seu livro, “Carlos Moreira – Fotografias”, publicado em 1977.
R de José Reis. Em 1968, uma anúncio nos classificados de um jornal paulistano oferece um curso de fotografia e laboratório e chama a atenção de Moreira. Realizado em um apartamento da rua Augusta pelos fotógrafos José Reis e Alberto Martinez, o curso acaba servindo para reunir um grupo que passa a se intitular “Novo Ângulo” e, salvo informação em contrário, se constitui no primeiro Coletivo da fotografia brasileira. O grupo garante a individualidade de cada trabalho mas se apresenta em conjunto, abolindo a assinatura individual das fotos. Em uma exposição realizada na Biblioteca Municipal Mário de Andrade a atitude gera surpresa e acaba merecendo matéria especial na revista Fotoarte, dedicada a fotografia, especialmente ao foto clubismo.
O editor ao receber as fotos para publicação, estranha: “[…] mas no verso das fotografias não se encontra as anotações habituais: título da foto e nome do autor. Telegrafamos solicitando os dados esquecidos. Em resposta também telegráfica recebemos a estranha informação: os membros do Grupo Novo Ângulo apresentam seus trabalhos sem identificação.”
O grupo, na verdade, quer fugir das limitações e normas rígidas que prevaleciam no Foto-Cine-Clube Bandeirantes e que balizavam o que era entendido como fotografia artística na época. Reis e Martinez pertenciam ao clube mas tinham ideias diferentes e acreditavam numa fotografia mais informal, livre. Moreira, que havia estudado no Bandeirantes adotou de imediato essa proposta de se libertar do rigor da composição e encarar o cotidiano das ruas. Cartier-Bresson, o momento decisivo e o branco e preto eram as referências.
– Há silêncio nas coisas. Atrás das imagens, dos momentos, das formas, dos tempos, há um silêncio interior – grávido, alegre e sofrido – no mundo – escreveu, fazendo poesia, Marilyn Tinney, uma das fotógrafas, na apresentação do grupo.
Ela continua: “[…] Aprendamos a ler com os olhos atrás dos olhos. Vejamos o mundo na sua riqueza; ali aprenderemos a viver. Há milhões de maneiras de olhar o mundo. Cada fotografia é uma personalidade. Aqui há uma infinidade de seres – aparentes e escondidos. O traço comum é somente um. Demorou-se um pouco nas coisas para ver o que diziam. A linguagem é infinita”.
R de Regina Martins. Em um dia de 2004, quando Carlos Moreira completava 40 anos como fotógrafo, ela reuniu fotos de diversos tamanhos, feitas por ele, ampliadas por ela, colocou numa pasta preta e se bandeou, na cara e coragem, para os lados do bairro da Luz, região central de São Paulo. Seu objetivo era encontrar alguém da Pinacoteca que se dispusesse a ver e expor o trabalho de Moreira. Encontrou o curador Diógenes Moura e a ousadia terminou numa mostra que ocupou três salões e durou três meses, embora houvesse sido projetada para um. No final do ano recebeu o prémio de fotografia da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte.
Regina é assim, uma espécie de âncora do fotógrafo. É ela que o mantêm com os pés nos chãos desde que se conheceram em 1980. Foi ela quem sugeriu e criou a empresa que ministra cursos e palestras em que ambos são sócios e professores. Foi ela quem praticamente o “obrigou” a concordar com a criação do atual estúdio em 2000.
Regina, formada em cinema, psicologia e atualmente cursando Letras na USP, foi aluna, monitora e depois responsável pela parte prática, no laboratório, das aulas que Moreira dava na Escola de Comunicações e Artes da USP. Quando uma alergia ao hipossulfito o impediu a continuar convivendo com os químicos fotográficos, foi ela quem assumiu o trabalho no laboratório. E não é só. É seu braço direito, espécie de anjo da guarda inseparável. Quando algum detalhe escapa da memória de um, o outro completa. Moram no mesmo prédio, em andares diferentes, e garantem, os dois, que só não discutem quando o assunto é fotografia.
– É ela quem cuida das fotos e de quase tudo ao meu redor, até dos meus e-mails, confirma Moreira.
R de Rosely Nakagawa. Em 1973, Rosely era uma caloura na FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, quando viu uma exposição de Moreira no saguão da faculdade. Sabia pouco de fotografia então. “Não sabia nem quem era Cartier-Bresson”, confessa, rindo. Mas essa exposição seria reveladora da curiosidade que no futuro a transformaria num dos principais nomes em curadoria, workshops e leituras de portfólio da fotografia contemporânea no Brasil. Naquele momento ela percebeu a importância da revelação e ampliação que exploram as máximas potencialidades de uma imagem, o papel que elas desempenham na leitura dessas imagens, coisas que ela desenvolveria ainda mais ao trabalhar com Cristiano Mascaro no laboratório da própria FAU. Da exposição, saiu com a certeza de que precisava conhecer o autor.
Imaginava Carlos Moreira como um professor formal, habitante de uma sala fechada e protegido por secretárias donas de agendas e intransponíveis. Entendia que precisava de um motivo para tentar uma aproximação. Em 1978, ao ser convidada por Thomaz Farkas para dirigir a Fotogaleria Fotoptica, ela surgiu. Moreira foi o primeiro fotógrafo que procurou e, por questão estratégica, o segundo a expor.
Ligou para ele, tomando o cuidado nas palavras para não ser entendida como uma entediada perua de uma galeria dos jardins em busca de um expositor para seu espaço. A conversa foi formal. Na data marcada, lá foi ela até a ECA e Moreira surgiu ladeado por Regina Martins e Hélcio Nagamine, os quais Rosely logo identificou como possíveis válvulas de escape, aquelas que em determinado momento da conversa lembram ao interlocutor a existência de reuniões e compromissos inadiáveis, que não podem ser atrasados, e impõem o fim do contato.
– Nada disso, garante, hoje, Regina Martins. A gente só queria ver quem era que ia falar com ele. A gente fazia isso com todo mundo que ia ao laboratório da ECA.
Verdade ou não, o fato é que a conversa que deveria durar pouco, durou horas. O entendimento foi imediato e resultou não só na exposição de 1979, na Fotoptica, como se transformou em amizade sem data para acabar.
– Rosely é minha amiga, curadora, conselheira, confidente e está sempre presente na minha vida e no meu trabalho. Ela analisa minhas fotos, discute. Cada vez que vejo a Rosely ela me parece uma pessoa mais linda.
Rosely diz que após a exposição, em 1979, Moreira passou a frequentar a galeria que ficava no trajeto que ele percorria em direção ao centro. Ele sempre parava por lá. Via as exposições, conversava sobre o material que ela estivesse analisando, palpitava, discutia. “É um grande leitor, sabe muito, conhece muito fotografia. Foi uma espécie de meu conselheiro informal muitas vezes”, revela.
Ela agora prepara um livro que será lançado dia 25 de fevereiro de 2014 com fotos antigas e atuais, dos mesmos locais, feitas por Moreira, e que está sendo publicado pela editora do SENAC em parceria com a Tempo d´Imagem.
Rosely, assim como Regina, revelam preocupação quanto a manutenção, organização e destino do imenso arquivo do fotógrafo e vive procurando soluções, sabendo que qualquer uma delas não vai contar com a participação de Moreira. Ele não olha seu arquivo, não revê fotos que já tenha feito, a não ser em casos de escolhas para exposições ou livros, não gosta de se debruçar sobre elas.
– O dia em que eu me voltar para meu arquivo eu serei um fotógrafo morto. E eu não sou, eu sou fotógrafo, minha vida é fotografar, o que eu gosto e quero é fotografar, afirma de modo categórico, o que não o impede de abrir as portas e gavetas para que isso seja feito por outros. Não quaisquer outros, que fique claro.
Não tem R mas tem importância semelhante o pintor, escultor, professor José Antonio Van Acker, provavelmente a pessoa com quem travou as maiores conversas sobre arte, pintura, fotografia. “Ele odiava Cartier-Bresson”, conta, bem-humorado. A conversa entre eles começou em 1968 e só parou com a morte de Van Acker em 2000. Os encontros entre eles nunca tiveram hora para acabar. Avançavam madrugadas adentro sem que nenhum deles percebesse. Havia sintonia. As vezes saiam juntos para fotografar e depois discutir. Nas aulas de Moreira, Van Acker sempre aparece em citações, em observações que fez sobre artistas ou fotógrafos como exemplos de percepção e conceitos que julga importantes e esclarecedores.
Jardins, Centro e Barra Funda
Ao optar pela fotografia em 1964, Carlos Moreira fez dela a sua vida. Como fotógrafo e professor de fotografia. Influenciado por Cartier-Bresson, foi para as ruas em busca daquela poética bressoniana que cabe num único recorte. “No início eu queria ser Bresson”, confessa, reafirmando a influência do fotógrafo francês. Influência que ainda permanece, embora em menor grau e muito diluída.
O tempo, o fotografar diariamente, o encontro entre o olhar, a sensação, a percepção e o clic gradativamente ampliaram sua forma e estilo de fotografar. E fotógrafos não franceses lhe trouxeram outras influências. Robert Frank, Lee Friedlander, Garry Winogrand lhe mostraram que a poética nem sempre se revela apenas naquele único recorte bressoniano. São autores de fotos que contam histórias que estão além delas, sugeridas por cortes abruptos, por tomadas pouco convencionais, pela liberdade de estabelecer uma narrativa em que elas são apenas uma parte e não a narrativa completa bressoniana.
Essas influências foram se incorporando ao seu trabalho porque, além de fotografar diariamente, ele é, e sempre foi, um leitor compenetrado, um estudioso da história dos fotógrafos e de seus livros de fotografias. Se interessa pouco por teorias, Roland Barthes e outros, mais ou menos cotados conforme a época. Gosta é de saber dos fotógrafos, quem são, como trabalham, suas obras. Sua leitura, nesse caso é lenta, densa, exploratória, milimétrica e implica em ir e voltar a uma pagina quantas vezes sinta ser necessário. Em esquadrinhar uma foto demoradamente até sentir que a domina. E esse tipo de leitura que sempre fez, para enriquecer a própria fotografia, repete nas suas aulas, junto com alunos absolutamente encantados com as descobertas que vão fazendo diante das suas leituras de autores e fotografias.
Embora frequentador do centro de São Paulo desde os 16 anos, e, quase certamente, dono de um dos maiores arquivos de fotos da região, iniciado em 1964, quando com uma câmera Exacta, emprestada de um primo, fez sua primeira foto na Praça Ramos de Azevedo, Moreira revela que não é a cidade que o motiva a fotografar e sim a fotografia, a linguagem, a sua capacidade de explicitar as mais profundas percepções.
Rosely Nakagawa, que conhece o trabalho do fotógrafo desde os anos 70, avalia que Moreira buscou através da fotografia o seu lugar na sociedade, o seu reconhecimento, E o fato de fotografar nas ruas é porque é ali que ele se torna invisível e confortável nessa busca. O fotógrafo concorda: “com a fotografia eu pude ser eu mesmo, sem restrições. A arte me deu a liberdade que não teria em outra atividade.”
Morador, hoje, na Barra Funda, a poucos metros de onde viveu Mário de Andrade, Moreira foi até pouco tempo atrás um andarilho e flanador. Um dia típico do período em que mais fotografou a cidade, começava cedo nos Jardins, onde morava, e continuava no final da manhã na Praça Ramos de Azevedo. Ali escolhia uma direção a seguir, sempre com sua Leica pendurada no ombro direito – sim isso já foi possível na região – costume repetido durante anos e que lhe custou um pequeno mas permanente desconforto nesse ombro. Mais que um fotógrafo de rua, ele sempre foi um fotógrafo das calçadas. Invisível em meio ao movimento da cidade, observador, não invasivo, olhos voltados para uma cidade particular e tão fugidia como seus personagens, silenciosa, enigmática, aquela com a qual, assim que descoberta, se identificava e fotografava.
Suas imagens têm aparência simples e uma estrutura visual altamente sofisticada. E se a percepção é a história, a narrativa que cada um dá às suas experiência emocionais, essas fotos, e não só essas, mas todas aquelas que fez, na cidade ou fora dela, são a narrativa do eu mais profundo de Carlos Moreira.
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