José Medeiros e as imagens que não deveriam existir: noivas, deuses sanguinários e silêncio rompido.
Por Georgia Quintas.
O livro Candomblé (1957) do fotógrafo José Medeiros (1921-1990) traz, além da sua própria história, narrada pela força concreta do universo ao qual a fotografia até então nunca antes havia estado, o contexto jornalístico-documental a qual esse ensaio esteve atrelado ao seu começo. Em paralelo à origem desse icônico trabalho de Medeiros, podemos citar certo pensamento do sociólogo Roger Bastide, quando em sua obra Arte e Sociedade (1979), expõe uma outra camada também dessa longa trajetória de Candomblé:
“A arte modifica a sensibilidade do homem, cria-lhe uma certa concepção do mundo, determina-lhe um certo comportamento, petrifica sua alma. E essa alma, uma vez transformada nas suas profundezas, vai impor ao exterior um estilo de vida, uma estetização do meio físico e social no qual vive”.
Em 1951, a revista O Cruzeiro publicou a incensada reportagem “As noivas dos deuses sanguinários” assinada pelo repórter Arlindo Silva, com fotografias de José Medeiros. Eram 38 fotografias. A matéria tratava-se de incumbência quase improvável, na verdade, mais para impossível: presenciar rituais de iniciação das filhas-de-santo de um terreiro de candomblé na Bahia. Tal ritual, cerrado e reservado aos que nele fizessem parte, era raramente vivenciado por aqueles que não integrassem esse rito de passagem religioso.
Contudo, a ida do jornalista e fotógrafo fora tomada por terceiros como que por questão de honra. Naquele mesmo 1951, antes da publicação de O Cruzeiro, a revista francesa Paris Match trazia a reportagem sobre o mesmo tema, de maneira eloquente pelo tom eurocêntrico e sensacionalista com que abordava Henri-Georges Clouzot (1907-1977), cineasta francês que assinou a matéria. Sobretudo pelo feito de ter rompido com o silêncio de ritual sagrado, mostrando cenas e cenários característicos do ambiente preservado visualmente de registros fotográficos. Desse modo, a equipe de O Cruzeiro motivou-se a transpor o que o olhar estrangeiro captara – antes da imprensa brasileira – com o ineditismo e qualidade das imagens apresentadas na revista francesa.
O antropólogo Fernando de Tacca em seu livro Imagens do sagrado: entre Paris Match e o Cruzeiro (2009) revela-nos matizes significativas através de primorosa pesquisa, a qual destaca-se passagens sobre as fronteiras entre território religioso proibido, a aura mística entre as relações de desconfiança entre o fotógrafo e os terreiros e a urgência jornalística. Tais contextos são primordiais para a compreensão do ensaio realizado por José Medeiros em Salvador (Bahia).
“Medeiros relatou-nos que teve uma experiência desagradável quando frequentava os terreiros tradicionais tentando as primeiras aproximações com o intuito de fotografar, e logo em um deles, mesmo sem portar o equipamento fotográfico, foi questionado por uma mãe-de-santo em transe, que se dirigiu diretamente a ele e falou: ‘Você veio aqui para fotografar, mas não vai não!’. Medeiros contou esta passagem com ar de espanto místico, mas, como um fotojornalista exemplar, refletiu internamente e decidiu que não iria desistir de mostrar ‘o verdadeiro candomblé’ e voltar para a redação sem o material prometido” (2009, p.19).
José Medeiros conseguiu adentrar exatamente no Terreiro de Oxóssi, da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma. Terreiro ou, como disse o pesquisador Fernando de Tacca, “casa não-tradicional onde três iaôs estavam em reclusão e em processo de iniciação”. Iaôs são pessoas que passam por ritual de longa duração com objetivo de tornar-se filha-de-santo ou filho-de-santo. Esse ambiente de reclusão (a camarinha), os procedimentos espirituais, as provações e incisões físicas, além do sacrifício de animais aos orixás, nunca foram esmiuçados pelo registro fotográfico de forma tão contundente.
À parte da polêmica ética sobre a maneira como foi consentida tal abertura a José Medeiros e Arlindo Silva – que segundo o fotógrafo pagou à mãe-de-santo –, outras questões se colocam. Ou seja, o impacto sensacionalista como foi divulgada a matéria, a riqueza imagética, etnográfica e antropológica inerente ao trabalho Candomblé (uma nova edição foi lançada em 2009 pelo IMS) implicaram em algo mais complexo. Tal como, a particularidade tensional em discursar o poder simbólico da presença em um campo de situação intensa de entrega corporal para os deuses. Não constitui tarefa fácil discorrer visualmente sobre algo que não lhe é familiar, inclusive religiosamente. Tal atmosfera desconhecida se potencializa pelo olhar que desempenha a capacidade de pontuar, aproximar-se, ao direcionar a câmara como se fosse um partícipe efetivo do ritual.
Estar e ser jornalista, não dirimi a condição de José Medeiros em operar certo olhar etnográfico diante de algo absolutamente antropológico. Na edição do livro Candomblé é plausível considerar a qualidade em estar consciente perante símbolos, objetos e performances, trazendo à tona uma idiossincrasia relevante à fotografia documental. Este traço do percurso revela em imagens o espírito do olhar de Medeiros ao observar pontualmente as ações, movimentos e gestos imbuídos de alteridade. Assim, se infere dada inclinação que nos é natural pela percepção em enxergar o outro, de querer aproximar-se da diferença que não lhe pertence mas lhe é sensível às relações culturais.
As três iaôs, aquelas moças tão concentradas em sua iniciação, noivas de energias metafísicas, tornam-se fortes personagens. Teatralizam sem saber para a fotografia o universo elegante de pessoas com sua crença, em parte de olhos fechados. Bezuntadas de sangue animal, quando não com seu próprio sangue. Cenários internos do terreiro rodeado de muita informação, a proximidade visível aos ângulos das imagens, assim como enquadramentos sucintos e diretos das protagonistas dessa história são alguns fatores que destacam não só a realidade como também a sensação de intimidade. Em todo o ensaio, percebe-se pontualmente a gestualidade, a entrega ao que parece ser um transe, um estado de sublimação pelas moças retratadas.
Embora o trabalho seja de beleza ímpar, a estética adotada por Medeiros perfaz não apenas o documento do que acontecia mas sobretudo cenas religiosas que o olhar sistematicamente apreendia. Não deixa de ser um processo antropológico inventariar o outro pelo compartilhamento, pela permissão em não ser um intruso. Pelo menos, esse era o acordado, ter permissão para estar em lugar sagrado, “desligado” de um outro mundo, do profano, do banal; contudo, sendo ele próprio a certeza da realidade do estado de ruptura ao criar a visualidade proibida.
José Medeiros descortinou situações autênticas até então não vistas. Ele soube ver sem impor, revelou o candomblé ao descrever particularidades religiosas de certo grupo social com clareza em inventariar o ritual. Compartilhou com a fotografia o documento etnográfico e a experiência antropológica que poucos deveriam presenciar. Volto a Roger Bastide (em citação destacada no começo do texto) quando explicita certa natureza do ser humano a encantar-se, ao destacar a arte como eixo propulsor para a sensibilidade, a mudança de sensações. José Medeiros, instigado por uma demanda jornalística trouxe para a nossa percepção certa concepção de mundo. Pôde-se assim destituir o que possivelmente o imaginário criaria. Passamos a interpretar o silêncio dessas imagens ao ecoarem em nós, ao confrontar mentalidades que compõem a estética do outro e suas crenças mais profundas.
Capas de 1957 e 2009
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