© Roberto Ploeg, 1999
No mundo das artes plásticas, a questão da releitura de grandes obras facilmente pode se estabelecer em criações frágeis, dissolvidas na própria superficialidade. Ser original – seja na forma ou em proposições de conteúdo – a partir de uma temática reconhecidamente trabalhada por um outro artista, que tenha impresso a relevância de sua obra, é um desafio.
Desafio este, que poucos são capazes de corresponderem ao exercício de redimensionar o próprio olhar através de signos já propostos. Inspiração, reinterpretação ou releitura são termos recorrentes aos artistas que promovem essa metalinguagem pictórica. Mas, lanço mais um termo: a redimensão. Nesse sentido, Roberto de Ploeg (artista holandês radicado em Pernambuco desde 1982) se estabelece e consegue promover uma fruição estética vigorosa com a obra do pintor, também holandês, Albert Eckhout (1610-1666).
A exposição Nativos – A série Eckhout de Roberto Ploeg, que pode ser vista no Centro Cultural Bandepe até o dia 1 de setembro, baseia-se nos retratos etnográficos (datados de 1641 e 1643) de Albert Eckhout – artista nassoviano que documentou a gente, a fauna e a flora do Brasil holandês no século XVII. Desse modo, Roberto Ploeg desloca a temática para sua contemporaneidade. E assim, os retratos representam figuras do cotidiano e aspectos sociais, além de expressarem a miscigenação do povo brasileiro de maneira contundente.
Como diria Henrry James, “As obras de arte são projeções da ‘vida sentida’ em estruturas espaciais, temporais e poéticas”. Ploeg sintetiza esta reflexão, pois além de apreender a multiplicidade étnica de seus retratados, ele sublinha fragmentos da essência da condição humana. Em cada quadro, a humanização dos referentes (que Ploeg pinta com modelo vivo) concentra-se nos semblantes e nos olhares. São olhares que incidem no espectador, criam uma linha imaginária entre dois mundos: o real visível e invisível. Afinal, as figuras de Roberto Ploeg são tão corriqueiras em nossa sociedade, e portanto banalizadas/pasteurizadas pela fugacidade do cotidiano, que provocam um reencontro com a nossa própria realidade.
As sutilezas inerentes às diferenças de cada indivíduo reverberam graças ao estilo realista de traços rápidos de Ploeg, assim como às pinceladas fortes, marcantes e direcionadas – quase um lampejo impressionista. Dessa maneira, a composição de seus “nativos” conota a fragilidade da dignidade humana em significativos índices estéticos. O olhar crítico sobre exclusão social, desvelado pelo empirismo do artista, elabora uma trama visual fértil de significações.
Ao redimensionar os retratos da gente do Brasil de Albert Eckhout, que Roberto Ploeg preservou as grandes proporções das telas adotadas pelo artista, vemos referências atuais também a respeito do cenário que cerca a figura retratada. O que antes estivera envolto numa atmosfera exótica envolvendo fauna e flora, em Ploeg percebe-se esta mesma hibridez entre o homem e seu meio. No entanto, o horizonte não nos indica mais engenhos, plantações de cana-de-açúcar, vegetações nativas, etc. Em Nativos, a paisagem é reformulada pelo olhar urbano do artista; contudo, os espaços revelam também o dinamismo do olhar social ao “passear” pela periferia da cidade (favelas), o interior do Estado ou o interior da casa do próprio artista quando compõe “a tribo de casa”, inserida num contexto de festividade junina.
A abordagem pictórica elaborada por Roberto Ploeg apresenta a pluralidade étnica do povo brasileiro através da singularização da figura humana, seus índices sociais e como moldura as particularidades de situações ambientais. Retomar uma temática e um estilo artístico pode resultar numa resignificação, quando descortinada pelo frescor criativo como acontece nesse caso. No momento em que esperamos pelo regresso da coleção eckhoutiana ao Recife, em setembro, ver Nativos de Ploeg é a oportunidade de entendermos o processo criativo desse artista e as interseções existentes entre os dois pintores.
Ao propor a mulher morena grávida com um bebê no braço no lugar da “Índia Tupinambá” ou o belo “Adão e Eva e o Cão Chupando Manga” que se contrapõe ao casal Tapuia de Eckhout, Roberto Ploeg consegue revisitar através de sua própria identidade estilística o universo visual de capturar o outro. Ploeg escreve na apresentação da mostra que “tinha vontade de revisitar Eckhout, com o intuito de fazer sua leitura do Brasil através do retrato”. De certo, ele conseguiu.
*Publicado no Jornal do Commercio em 27 de agosto de 2002.