Foto: Gertrude Käsebier (1852-1934) – Evelyn Nesbit, 1903
Ultimamente, os retratos que impregnam o nosso entorno visual tendem a embaçar o olhar e provocam uma sensação de falta de profundidade. Aqui, o sentido profundo vai além da perspectiva pictórica. É sobre a fruição a que me refiro. Cada vez mais, tento encontrar na fotografia de corpo, retratos que expurguem o prosaico e que mostrem o outro de maneira contundente suas próprias representações. Em essência, a identidade que emana do corpo não está apenas nele. Os retratos fotográficos, desde sempre, são sintomáticos. A individualidade que se projeta na fotografia respira inefavelmente em nós, na nossa relação com o próprio meio que intermedia as representações. A pose permitida é transfiguração, auto-referência de desejos muito próprios, às vezes bem pessoais, outros de caráter social. Então, onde está o mimetismo? Na certeza, de que o que vemos é real. Porém, uma realidade que não passa de simulacro, de uma narrativa bidimensional. E filosoficamente, isso faz toda a diferença.
O surgimento da técnica fotográfica reconduziu uma maneira de ver e de ser visto. Não apenas isso, revelou uma linguagem própria complexa em suas idiossincrasias estéticas e simbólicas. Em parte, o fator mecânico e sua indiscutível natureza indiciária, de veracidade especular, em muitos momentos estiveram atrelados a propósitos científicos questionáveis como na fotografia antropométrica. Os retratos realizados por uma série de fotógrafos na Europa do século XIX consideravam a fisionomia a resposta ideal e normativa para determinados argumentos. Com base no cientificismo, o objetivo era classificar aspectos da criminologia e psiquiatria; assim como, dar conta de questões antropológicas relacionadas à raça em momentos de colonialismo. Historicamente, retratar as pessoas através da técnica fotográfica sempre teve intencionalidades bem definidas. Embora, seja definitivo o conceito de identidade, os retratos ao longo do processo do olhar fotográfico revelam particularidades sociais e culturais.
No entanto, o corpo se libertou. Houve trabalhos que trilharam as nuances que a linguagem fotográfica exerce no âmbito da criação artística. Podemos encontrar exemplos clássicos e contundentes – ainda no auge da moral que se exigia do comportamento e das atitudes femininas do final do século XIX – de que a imagem que se quer de si e para o outro é uma construção ad infinitum. O que envolve algumas rupturas da representação da identidade corporal, sobretudo, feminina. Como no caso da Condessa de Castiglione (1837-1899) que em meados do século XIX, protagonizou retratos ousados, mas, principalmente, comprometedores para quem os possuísse. E o que dizer dos fabulosos retratos de mulheres no estúdio francês Reutlinger (1850-1924) ou de Paul Nadar? A força plástica de tais imagens denota que os trejeitos contidos em trajes sufocantes gostariam de expressar algo mais. Então, se percebe que o ocultamento é muito mais inspirador. Daí, os clichês serem sempre o lugar comum que torna a nudez gratuita e pueril.
Não há como negar que as convenções estilísticas dialoguem com parâmetros ideológicos. Conteúdo e forma são indissociáveis. Portanto, um dos períodos mais expressivos de representação artística do corpo foi a fotografia pictorialista. Nesse sentido, vale relembrar do trabalho da fotógrafa americana Gertrude Käsebier (1852-1934). Com sua ambigüidade pungente entre densidade e sutileza, deixou marcas no imaginário das cenas domésticas, de acordo com o estilo pictórico e os anseios de legitimar a fotografia como arte, no início do século XX.
As concepções sobre nudez e erotismo seguiram-se no universo da fotografia… Logo, a trajetória de registrar o corpo iniciou um processo de subjetividade, desprendendo-se do realismo. É preciso perceber que os estilos deságuam inevitavelmente em outras percepções. E assim, ocorreu uma ruptura determinante com relação ao romantismo e à sexualidade na história da representação corporal na fotografia. Chega-se ao surrealismo, movimento que dessacraliza a temática da nudez tornando a idéia do corpo em alegoria e meio para a vanguarda de então.
No entanto, nada é gratuito no que contemplamos, pois o que articula a mise en scène a ser capturada é o desejo de seduzir, de aproximar, provocar os sentidos do outro. A simbiose entre retrato e retratado alinhava uma relação simbólica cuja complexidade invade várias esferas. Ou seja, desde a memória afetiva familiar e doméstica até a vida íntima dos indivíduos. O ato de registrar referenda o corpo como texto discursivo. Há o processo, o conteúdo e a dinâmica metafórica da imagem. Portanto, fotografar o corpo é penetrá-lo na epiderme do espírito e não no banal ou no clichê. O êxtase está no momento e, em algumas imagens fotográficas, nem rosto possuem. O torpor provem da atmosfera imagética. Lembro-me de J.W. Goethe, em “Os sofrimentos do jovem Werther”, que diz: “Falta-me o fermento que agitava, movia a minha vida; desapareceu o encantamento que me mantinha desperto a altas horas da noite, que de manhã me despertava do sono”. Ver um corpo fotografado pode ser isto. Como também, ter a sensação do vigor e do momento feérico entre a captura de um olhar sob o encanto sensível do corpo a sua frente.
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