Se a minha memória não me falha, um dos primeiros livros teóricos sobre fotografia que li foi “Linguagem fotográfica e informação”, de Milton Guran. Era 1991, 1992 e eu, um jovem fotógrafo e estudante de comunicação. Fotógrafo e antropólogo, Guran é um estudioso da imagem e suas representações. Vive aqui e na África, onde suas pesquisas se encontram. Passados quase vinte anos que li o seu livro, Guran nos brinda com frases como “A web é hoje o maior suporte da fotografia documental em todas as suas modalidades”.
* A entrevista com Milton Guran foi realizada por Georgia Quintas.
Foto: Leo Pinheiro
OLHAVÊ Como acontece o início de sua história com a fotografia?
MILTON GURAN Em 1971, precisei sair do país e fui para a Europa. Passei por Londres e acabei me fixando em Paris onde conheci um grupo de fotógrafos brasileiros, entre eles Chico Mascarenhas e Pedro Pinheiro Guimarães, que trabalhavam com Alécio de Andrade na sucursal da Manchete. Foi com eles, futucando contatos, que descobri a fotografia como forma de expressão. De volta ao Brasil, fiz um curso com o Georges Racz no Museu de Arte Moderna do Rio e pronto, caí dentro.
OLHAVÊ Nos fale sobre a relevância do fotojornalismo em sua carreira profissional.
MILTON GURAN Quando eu comecei a fotografar já era jornalista profissional, com registro e tudo. Naquele momento, em pleno governo Médici, me pareceu que produzir imagens era mais eficaz do que escrever para a censura, achei que era mais fácil fazer a mensagem passar pela imagem do que pelo texto. Além disso, eu virei outra pessoa quando comecei a fotografar, foi como se, de repente, eu tivesse ganho uma função no mundo.
OLHAVÊ Você foi um dos fundadores da AGIL Fotojornalismo na década de 1980. O que representa esta época para você e como era o mercado de então para as agências fotográficas?
MILTON GURAN A AGIL foi fundada no começo de 80, pouco depois da Central Fotojornalismo e da F4, ambas de São Paulo, no bojo de um movimento bem amplo de repórteres-fotográficos pela liberdade de imprensa, valorização da informação visual e do jornalismo investigativo, pelo respeito aos direitos autorais e ao trabalho do fotógrafo em geral. Naquela ocasião vivíamos em um regime militar e a derrubada desse regime e a redemocratização do país eram prioridades absolutas da sociedade civil. O fotojornalismo se colocava, então, como o instrumento a nossa disposição para participar desse processo.
Muitos foram os fatores que construíram esse chamado movimento de agências, mas houve um dado conjuntural fundamental para que a coisa acontecesse, havia por parte da sociedade um desejo enorme de saber o que se passava, conhecer o país e seu povo, repensar o Brasil na perspectiva de uma nova ordem democrática. Isso durou até a morte do Tancredo e a posse do Sarney. As forças conservadores se realinharam e o interesse pela noticia foi diminuindo. A informação diferenciada e calcada nos movimentos populares que era oferecida pelas agências deixou de ter tanto valor para a grande imprensa, que, afinal, era a nossa clientela. Só sobreviveu quem foi fazer assessoria de imprensa bem paga ou coisas desse tipo.
Reunião semanal da Agência Agil, Brasília (1983). Da esquerda para a direita: Julio Bernardes, Milton Guran, Kim-Ir-Sem, André Dusek e Duda Bentes.
Fotos: Milton Guran
Anistia, Congresso Nacional, Brasília, 1978.
OLHAVÊ O que o fez dedicar-se às pesquisas acadêmicas?
Como repórter-fotográfico tive oportunidade de conhecer de perto os povos indígenas que se tornaram o meu tema preferido de trabalho. Para entender melhor essa culturas fui ler antropologia, o que me aproximou deste campo de pesquisa. Depois de fazer uma especialização em antropologia e um mestrado em Comunicação, surgiu a oportunidade de continuar a minha formação acadêmica com um doutorado em Antropologia na École de Hautes Études en Sciences Sociales, na França.
OLHAVÊ Como se deu sua passagem do fotojornalismo para a Antropologia? Como o campo da pesquisa em Antropologia passou a fazer parte de sua vida?
MILTON GURAN O fotógrafo fotografa o que ele é, na verdade. Na medida em que ele vai se formando e se construindo como individuo, seu olhar vai sendo instrumentalizado pela sua área maior de interesse e pelas suas vivencias, naturalmente. A antropologia é um campo privilegiado para pensarmos a vida, já que ela pode se conectar com praticamente todos os outros campos das ciências humanas e da arte. A prática da antropologia – que se fundamenta na observação qualificada, como a fotografia, por sinal – por um lado tem me ajudado a organizar a minha percepção do mundo, embora por outro também exerça uma pressão redutora, devido ao seu caráter cientifico. A grande questão é como administrar essa tensão, ou seja, como fugir da antropologia para mergulhar na vida, que é a matéria prima da minha fotografia. Como fotógrafo, eu quero ser poeta, apesar de ganhar a vida como repórter, pesquisador e professor.
OLHAVÊ Primeiro, seu olhar que busca a alteridade se dá com os indígenas, logo depois africanidade… O outro para nós antropólogos é sempre a certeza do encontro de compreensão de significados. Nos fale sobre esse seu olhar.
MILTON GURAN Eu me candidatei a uma bolsa de doutorado na França com um projeto para estudar o meu próprio acervo sobre os povos indígenas. Mas lá me descobri em um laboratório de pesquisa africanista. Então, para não perder essa oportunidade única de descobrir a África, eu mantive as linhas mestras do projeto – identidade e fotografia como instrumento de pesquisa – mas mudei o foco para a identidade social dos descendentes dos antigos escravos retornados à África Ocidental, os chamados agudás. Com isso me lancei em uma pesquisa de grande fôlego, como são as pesquisas de tese, em um assunto que me era quase que completamente desconhecido. Isso foi muito bom porque me permitiu mapear os procedimentos de pesquisa necessários para a boa utilização da fotografia pela antropologia. A minha habilidade como fotógrafo dirigiu-se, então, para a produção de imagens que fossem eficientes e contribuíssem efetivamente para a evolução da pesquisa.
OLHAVÊ Quais são seus projetos de pesquisa atuais?
MILTON GURAN Eu continuo trabalhando sobre a cultura aguda na África Ocidental – Benin, Togo e, agora, a Nigéria – com ênfase no patrimônio arquitetônico, e tenho me aproximado também dos Tabon, comunidade de matriz cultural brasileira de Gana. Alem disso, há as eternas questões teóricas que sempre me interessaram, ligadas sobretudo à linguagem e aplicabilidade da fotografia. Aos poucos vou finalizando um livro sobre fotografia como instrumento de pesquisa, ao lado de outros projetos editoriais. E, cada vez mais, tenho me dedicado à curadoria, tanto de grande eventos (FotoRio) quanto de exposições singulares.
Generais, Brasília, 1979.
Petrônio Portela, Senado Federal, Brasília, 1978.
Ulysses e Tancredo, Brasília, 1980.
OLHAVÊ Em 1998, estive em uma palestra (sobre suas pesquisas na África ) na qual o senhor versou sobre temas sócio-culturais a partir de um ensaio belíssimo em preto e branco, repleto de retratos. Ali, havia o senso do fotojornalismo na narrativa imagética. Como você analisa esses campos de atuação da fotografia?
MILTON GURAN Não sei se entendi bem pergunta, mas o fotojornalismo é esteio de quase tudo no domínio da fotografia documental. É o campo de experiência fotográfica onde os limites de registro do mundo visível são expandidos e testados em permanência. Para nos, fotógrafos documentaristas, é a grande escola. Quem passou pelo fotojornalismo incorporou uma experiência que vai ser útil em qualquer outro tipo de atividade fotográfica.
Em termos gerais, no jornalismo o objeto da imagem é a noticia, enquanto que na antropologia é o dado antropológico, ou seja, aquele aspecto de uma cena que pode contribuir para o desenvolvimento da reflexão antropológica. No caso da expressão pessoal pura e simples, o compromisso do fotografo não é tanto com algo externo, como nestes dois exemplos, mas principalmente com o que ele carrega dentro de si. Esse é o compromisso do artista. Mas, em todos os casos, o treinamento do fazer fotográfico como repórter pode ajudar muito.
OLHAVÊ Realizar encontros como o FotoRio são ações normativas que promovem o debate em torno de problemáticas contemporâneas mais do que pertinentes. Nos fale sobre este encontro que iniciou-se em 2003 e o futuro dele.
MILTON GURAN O FotoRio tem algumas peculiaridades, a principal delas é ser um movimento de fotógrafos que até hoje vem acontecendo sem patrocínio ou apoio oficial algum. Nasceu pelo esforço coletivo do pessoal que fazia o curso de pós-graduação em fotografia que eu coordenava na Universidade Cândido Mendes, e ainda atualmente os seus principais dirigentes – Joana Mazza e Melanie Guerra – fazem parte desse grupo.
Outra peculiaridade nossa é que somos um evento de adesões que tem como objetivo dar mais visibilidade à fotografia como um bem cultural de primeira necessidade. Isso quer dizer que privilegiamos a expressão dos mais diversos setores da sociedade com intuito de formar platéia. Tanto, atuamos nos mais importantes, sofisticados e exigentes espaços de exposição – como o Museu Nacional de Belas Artes, e demais centros culturais de primeira linha – como nos esparramamos pelas Lonas Culturais e centros comerciais de bairros periféricos, e saímos aas ruas com o FotoRioRua, já com duas edições bem sucedidas de intervenções urbanas. Também investimos na reflexão e na produção de conhecimento, com leitura de portfólios, oficinas, debates e seminários, bem como organizamos o Encontro de Inclusão Visual do Rio de janeiro (em 2011 vai acontecer o sexto), reunindo projetos que usam a fotografia como um instrumento de inclusão social.
O FotoRio tem acontecido em mais de cem espaços diferentes, com a participação direta de cerca de 400 fotógrafos expositores. O futuro do FotoRio passa por uma estruturação de seu modo de funcionamento e profissionalização dos seus quadros. Ou seja, sem apoio do poder publico ou financiamento privado efetivo, nós simplesmente vamos deixar de acontecer.
OLHAVÊ André Rouillé, um dos mais importantes autores franceses, esteve na última edição do FotoRio 2007, trazendo questões profundas. E você fez a apresentação do seu livro “A Fotografia – Entre documento e arte contemporânea”, que se coloca com uma obra emblemática. Nos fale de sua percepção sobre fotografia documental e do que chamam contemporânea.
MILTON GURAN Quando o Rouillé fala em documento, no titulo desse seu ultimo livro, ele está pensando na forma como a fotografia foi percebida em seus primórdios, como uma prova do real, um testemunho irretorquível do acontecido. Ele justamente parte desse ponto para apresentar e analisar toda a trajetória da fotografia até o momento presente, em que ela aparece como a grande estrela de todas as bienais de arte contemporânea.
O que digo na apresentação desse livro é que, na minha opinião, é a obra definitiva para se pensar a fotografia hoje. Rouillé faz uma releitura critica de praticamente tudo o que se pensou e escreveu de relevante sobre foto, balizando o caminho daqui para diante.
No que toca à fotografia documental, há um aspecto interessante a ser comentado. Até bem pouco tempo, se anunciava aos quatro ventos e a plenos pulmões que a fotografia documental tinha morrido. Alias, nesta mesma época se duvidava firmemente da lisura da imagem digital enquanto documento, já que ela pode ser alterada com muita facilidade. Mas o fato é que a imagem digital recolocou o caráter documental da foto na ordem do dia, em grande estilo. Seja produzindo documentos irretorquíveis, como os da tortura em uma base militar americana do Iraque, seja circulando em blogs e similares, sem que alguém sequer duvide do estatuto de verdade das imagens apresentadas. A web é hoje o maior suporte da fotografia documental em todas as suas modalidades. A qual, por sinal, vai se fundindo com o vídeo de curta duração, abrindo assim novos espaços criativos que estão sendo absorvidos com avidez pela arte contemporânea.
OLHAVÊ Você tem acompanhado o trabalho de fotógrafos como, por exemplo, os mineiros João Castilho e Francilins? Como você vê a fotografia brasileira atualmente?
MILTON GURAN Conheço e admiro o trabalho desses mineiros, mas não tenho tido oportunidade acompanhar como gostaria a nova produção fotográfica brasileira como um todo. Tenho a impressão de que há muito mais coisa acontecendo do que consigo acompanhar, apesar de coordenar um festival como o FotoRio e de participar de tantos outros.
Do meu ponto de observação, creio que o que se passa de mais importante na fotografia brasileira hoje não está no plano da criação, em que pese a forca de muitos trabalhos, mas no da organização. Novos canais de expressão e de circulação da imagem vão se abrindo sem parar e os próprios fotógrafos estão pensando e repensando suas formas de produção. Como atestam o grande numero de novos eventos do tipo festival e a formação da RPCFB. Sem duvida, estamos vivendo atualmente na fotografia um daqueles momentos férteis que, de tempos em tempos, renovam tudo e marcam época.
Celebração do Nosso Senhor do Bonfim, Porto Novo, Benim, 1995.
O Dah Dagoun Nonchéokon, chefe do culto Dagoun, com dois de seus filhos, Uidá, 1996.
O “samba” ensaio da burrinha , Cotonu, 1995.
Moças Kamayurá, Xingú, 1978.
Uka-uka,Xingú, 1988.
Yanomami Pista Paapiú, RR, 1991
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