Fotos: Alexandre Belém
Costumo abrir livros de fotografias e contemplar as imagens fotográficas. Após esta “primeira leitura”, me detenho às referências textuais, ao processo criativo, aos conceitos trazidos pela produção do autor. Preciso sentir a obra em seu todo, passar pelo rito de hipóteses, sensações, deslocamentos, aproximação com outros artistas, para ao final observar o avesso, os fenômenos que se apresentaram para o autor e que se transformam aos olhos do observador diante dos signos.
Em 2010, o fotógrafo mineiro Pedro Motta lançou seu primeiro livro, intitulado Temprano, realizado através do edital Conexão Artes Visuais – Funarte. A obra de Motta retém o tempo da paisagem em várias situações. Apesar de esboçar no título algo que cedo se anuncia, os ensaios rompem com o compasso do tempo em sua latitude enquanto cria, preenche, arruma, constrói, sobrepõe, subjuga, corrói, abandona e termina. Sutilmente, Motta centra-se no limiar destas questões no uso da fotografia. A atitude do recorte temático é criada no tênue equilíbrio das paisagens que ora deixam escapar a natureza-morta que há nelas ora evoca o inusitado de uma natureza interrompida ou imbricada ao concreto. Diga-se, do concreto presente na simbiose entre espaços e paisagem ao conotar a força de um eixo investigativo do fotógrafo. É nesse ponto que o livro Temprano nos faz perceber a extensão das estratégias que perpassam a linguagem fotográfica sob perspectivas de recorrência, acúmulo, documentação, metáfora e alegoria por meio da forma.
Quando mencionamos o termo estratégia, aludimos ao que todo artista tende a pôr em seu processo criativo após sua tomada de ideia. E não há nada de negativo ou pejorativo em utilizarmos o termo – alguns podem considerar a expressão muito próxima ao marketing do mercado da arte –, faço uso aqui da palavra pela afeição às proposições estéticas relevantes que auxiliam na compreensão de trabalhos fotográficos. Enfim, a estratégia que não deixa de ser o desenvolvimento de “encontrar” o caminho para a narração de motivações artísticas. Com Temprano, é possível que o olhar seja conduzido por velada dicotomia que deságua no pensar sobre o que vemos de real, enquanto pesquisa, em contraponto ao que acreditamos ver. É nessa oscilação entre improváveis encontros da natureza com o concreto urbano e cotidiano ou quando o indivíduo deixa resquícios de suas pretensões na paisagem (ou no esfacelamento dela) que as imagens de Motta se erguem.
O livro reúne vários ensaios aparentados, poderíamos assim dizer. A estrutura conceitual de Motta se estabelece em elementos singulares como o estatuto da espacialidade e seus significados quando contemplados pela destreza em construir além dele. Nesse sentido, há uma quê de melancolia no olhar do autor em entregar-se a territórios retumbantes, por seu vigor físico, em contraposição ao estágio nonsense do descaminho, do adaptar-se a tempos sem funcionalidades, sem perspectivas, sem futuro talvez… Os ensaios apresentados em Temprano assumem autêntica autonomia de representação.
Através das paisagens de Temprano, transitamos pelos ensaios Fachada Cega (2003-2004), Caixa d´água (2006), Caçambas (2001-2007), Sem título (2002) e Arquipélago #2 (2008-2010). Discretamente, a visualidade estruturada nas pesquisas de Motta, nos promove algumas falácias e armadilhas. O tom esquemático, econômico e direto nas composições, assim como a ausência de pistas (referências) que nos desgrude do incômodo de tantas cenas insólitas e paradoxalmente tão simples, funciona com um jogo de sedução. Ou seria, simulação? O autor Jean Baudrillard, em sua obra Simulacros e Simulação (1991), coloca-nos um pensamento muito oportuno a respeito de território:
“(…) Um território também não é um espaço, com o que este termo implica para nós de liberdade e de apropriação. Nem instinto, nem necessidade, nem estrutura (nem que fosse cultual e comportamental), a noção de território opõe-se também, de alguma maneira, à de inconsciente. O inconsciente é uma estrutura enterrada, recalcada, e indefinidamente ramificada. O território é aberto e circunscrito. O inconsciente é o lugar da repetição indefinida do recalcamento e das fantasias do sujeito.”
De tal modo, o processo de criação de Pedro Motta traz esse território simbólico entrelaçado à premissa de guardar imagens que necessariamente não existem. No entanto, são imagens conscientemente forçadas a nascerem através da inclinação fotográfica de Motta em dar conta de como os espaços se apresentam e tangenciam a reflexão. O conceito, portanto, constitui a base do arcabouço dessas imagens. A subjetividade surge da forma – dos espaços capturados e confabulados – porém, entretanto, é em sua aparente tranquilidade que nos escapa a sutileza da manipulação do natural pelo artista. O que torna a complexidade do ícone (do que se representa) muito íntima da conjectura processual e simbólica que significa esta interferência. Pedro Motta metamorfoseia sim, o que torna seus ensaios tão instigantes. A cada nova imagem que dialoga com a anterior por seu corpus temático, percebemos que há intencionalidade em cadenciar os objetos em seus espaços (ou vice-versa) como instrumento de conquista imaginária com relação à investigação.
Transformação é uma palavra que sublinha a retórica de Temprano. Annateresa Fabris, indiscutivelmente, uma das minhas autoras favoritas, ajuda nesta reflexão sobre o realismo na perspectiva fotográfica e sua imbricação com as novas tecnologias, quando escreve:
“(…) nos dias de hoje se configura como uma problemática bem complexa, que obriga a rever categorias e conceitos operacionais, estratégias e funções cognitivas, em virtude de uma mudança conceitual profunda, na qual se inscreve o deslocamento da ‘representação’ para a ‘apresentação’, do ‘simulacro’ para a ‘simulação’, numa atmosfera cultural que autores como [Pierre] Lévy não hesitam em definir como uma nova Renascença”.
É muito prazeroso quando um trabalho fotográfico suscita tantas questões e nos envolvem em particularidades conceituais com as quais são revestidas as fotografias. Gosto muito, sempre que releio o autor Peter Osborne, de algumas de suas proposições como esta que diz que a foto se distribui através dos espaços do seu processo, que a impregna como uma imagem. Ou quando, sintetiza Osborne: “Existe uma afinidade ontológica aqui entre a fotografia e a arte conceitual ou, de forma mais genérica, o lado conceitual de toda forma da arte. Porque não há um espaço fixo para a foto nem para a obra de arte”.
Vejo nessas duas reflexões o caminho da criação de Pedro Motta e o espaço que Temprano ocupa enquanto narração fotográfica. Fica também um alento quando contemplamos a sedução da fotografia pela natureza que deixa de ser verossímil e análoga, passando a ser um requinte de criação. Sedução pela natureza construída em imagens – sem utopia, sem beleza – de um vazio repleto de sentidos e buscas. Temprano nos mostra que a dúvida diante imagem fotográfica faz com que pensemos mais sobre nosso modo de ver as coisas. De como outra perspectiva, menos rígida, mais próxima das possibilidades da fotografia como domínio de expressão, nos faz enxergar além.
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