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A fotografia é a arte necessária para o tempo
Por Georgia Quintas
Desmedidamente, me desprendo do tempo. Passei a sentir tempos que não são meus e que tampouco cabem em mim. A cada vivência diante de uma imagem fotográfica, recai não o que guardei, do que acumulei nas pequeninas gavetas de minha memória. Eu, enquanto tempo, passei a negá-lo. Ao certo, ao acerto mesmo, não consigo cristalinamente lhe explicar. Mas, se me permite, gostaria de dizer o porquê de querer levar comigo suas fotografias. Já faço isso há um tempo… Compro, guardo, enfim vou atrás delas. Não importa a data de sua produção, se são estereoscópicas, carte de visite, cabinet portrait, etc. O que interessa é o quão de anônimo há nelas. Sim, concentro o meu olhar em retratos. Nas pessoas que nunca conheci e que nunca as conhecerei, mas que chegaram a mim de alguma maneira.
Esse é um relato a se pensar, a se debruçar pela força da interpretação, da leitura, da imersão sensorial e subjetiva que se habilitam a partir da imagem fotográfica. O tempo cronológico (em sua concretude indefectível) reside na imagem, mas – apesar dele – outros tempos se desencadeiam e se emaranham. Os tempos na fotografia que capturamos ingenuamente, contemplamos, nos deslumbramos, negamos, vivemos, percebemos e sentimos são efêmeros e construídos.
A imensidão rege o tempo fotográfico. Os significados do tempo no campo teórico foram e vão se categorizando. Portanto, vem a busca de reconhecer o tempo mas, no entanto, transpondo-o para o território da criação, da percepção e da memória. A fotografia, quando posta enquanto paradigma de um tempo e espaço, reconstrói em nós narrativas indomáveis. Como bem considerou o artista surrealista Salvador Dalí, em reflexão sobre a fotografia como pura criação do espírito, em 1927: “Saber mirar es un sistema completamente nuevo de agrimensura espiritual. Saber mirar es un modo de inventar”. Juntemos a essa defesa uma outra colocação, desta vez sobre o tempo, do poeta André Breton, que o define como sendo velha farsa sinistra, trem que descarrilha continuamente, louca pulsação. Os dois apartes trabalham com a dimensão imensurável que une os elementos visuais dispostos na imagem e o não-limite do tempo. A cada retrato, seja de meados do século 19 ou da ampla produção de retratos que podemos presenciar em nossa contemporaneidade, a relação de fruição de significados se revigora ao estado de um tempo anônimo.
Tempo anônimo: aquele que não me pertence, que desconheço. O tipo de tempo que não cabe em mim e que, tampouco, está em nós. O outro retratado – auto-representação, personagem contido na pose – guia a problemática do tempo. Entrever a dinâmica de possíveis narrativas numa imagem fotográfica é estabelecer com ela uma conexão com o tempo sugerido através da plástica visível. Após esta aproximação primária, pois se trata de uma relação de encantamento com o retrato fotográfico, é preciso cair no terreno abstrato que constitui e desenvolve a imbricação que passamos ao perceber essa imagem.
Quando busco a imagem de um anônimo e, por conseguinte, seu tempo alheio, nas entrelinhas há a ideia de relação, simbiose; ou, como considera o filósofo Maurice Merleau-Ponty, o vínculo… “Compreende-se então por que, ao mesmo tempo, vemos as próprias coisas no lugar em que estão, segundo o ser delas, que é bem mais do que o ser-percebido, e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do corpo: é que essa distância não é o contrário dessa proximidade, mas está profundamente de acordo com ela, é sinônima dela” (Merleau-Ponty, 1959).
O vínculo, portanto, potencializa o não-classificável, a incerteza, a obscuridade das histórias. O indivíduo anônimo prioriza a flexibilidade de construirmos, interpretarmos e de, substancialmente, delegarmos nossas estórias. O tempo que aqui se contorce também no anonimato provém de alguns vieses que implicam o pré, durante e pós ato fotográfico. Não se trata de negar, rechaçar o tempo histórico, diacrônico e social. Mas contudo, nesse caso, de não adotá-lo. E sim, de penetrá-lo pelo imaginário que a fotografia magicamente cria.
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Um belo cenário fantasioso de qualquer estúdio fotográfico do século XIX ou de início do XX encaminha à tônica do devaneio e, em muitos casos, do feérico. O maneirismo desconcertante do mobiliário, as pinturas nonsense dos trompe l´oeil dos fundos infinitos com suas paisagens deslocadas, impróprias à nossa cultura – explicitamente européias para estas plagas – revelam o simulacro. Com a predominância relevante das casas fotográficas de origem européia no Brasil, no século XIX, entendem-se os paradigmas em questão. O que não vem a ser um problema, mas uma sedutora possibilidade de desvelar camadas interpretativas da fotografia.
O lugar estático, colocado por uma demanda comercial de determinada casa fotográfica de séculos passados, formula realidades posadas que instilam progressivamente sensações. A imagem, portanto, revela-se como percurso imaginário deste mundo sensível que transcende o que fora captado pela câmera fotográfica. Rostos, corpos, roupas, chapéus, jóias ou simples adornos, penteados, acessórios da moda da época. Tudo captado pela fotografia compõe, além do dito documento de dada época, o registro involuntário do nosso poder perceptivo de imaginar. Podemos “ver” o instante que conta a imagem fotográfica não como marca incrustada na linha do tempo, contudo, como artifício de distender visualidades temporais em código de narração.
Os retratos de batismo, de crianças, casamentos, de grupos de famílias, de mulheres e homens encontrados nos antigos álbuns de família tecem o enredo de tempos retóricos, apesar de carregados de signos sociais, são passíveis de serem redigidos pelo observador. As vidas transformam-se em teatralização da realidade, nossos olhos vagueiam pelo antes da tomada de cena. Ou seja, o porquê da existência daquela imagem, seu preparo, a máscara social que os tornam personagens. A duração da captura até o momento da emulsão trazer à superfície os sujeitos fotografados também “sopra” em si meandros da temporalidade. Essas situações latentes no próprio tempo do fazer fotográfico introduzem em nós a poética das imagens fotográficas. Diria ainda que, à parte da subjetividade do tempo que vem do outro, alinha-se a capacidade de decodificação dos elementos visuais, das informações objetivas do contexto e da memória.
É como se o ciclo aumentasse, mas não se fechasse. A experiência fotográfica do receptor se inicia, porém não finda. O filósofo Jean-Marie Schaeffer ilustra as nuances do que ocorre entre a imagem e quem a contempla, quando relata: “(…) A foto que representa um senhor idoso que não reconheço faz, no entanto, parte de meu mundo, simplesmente porque vem da caixa de biscoitos onde minha mãe guardou as fotos da família. Se minha mãe ainda for viva, posso perguntar-lhe de quem se trata, se não, tal idoso entrará para grande galeria de fantasmas da infância, que não sabemos se conhecemos realmente ou apenas pelas diferentes histórias da saga da família e que, no entanto, são sempre muito próximos” (Schaeffer, 1996).
De tal modo, se reconstitui um passado ora verossímil ora ficcional. Ora pela memória afetiva ora pelos atalhos do inconsciente. De certo, o encaminhamento que a retórica da imagem explicita será ressignificada por quem a observa de modo particular. Diante do retratado, sua solitude será partilhada, sua forma pouco confiante ou hierática (não importa) será compreendida com complacência. A pose irá indicar, trará índices plausíveis de como o corpo se coloca perante uma câmera e um fotógrafo. O hiato entre os ícones e o nosso reconhecimento das tais referentes (a tese da existência, como sugere Jean-Marie Schaeffer) serão “transformados” como artifício de aproximação ou distanciamento de idealizações e imaginações íntimas de cenas que nos ajudam a entender a natureza humana e seu entorno, assim como a sonhar. Transporta para determinado contexto repleto de sons, cheiros… Sensações quase reais.
E quando vemos além dos retratos posados? O que pensar de uma fotografia estereoscópica (possivelmente de meados do século XIX) com meninas vestidas no seu doce encanto. Detalhe: as quatro meninas estão em um inacreditável quarto, de joelhos a rezar. A cena é a própria representação da ideia que se quer registrar. A beleza de tudo e a magia trazida pela tridimensionalidade da técnica adotada provocam o fetiche de vários estados como o de estar e transitar no cenário que vemos. Passamos a “vivenciar” um tempo passado que nunca fora vivido, mas que, entretanto converte-se organicamente em presentificação. Muitas vezes, retornamos a um ponto sem nunca termos ido. A penetração numa imagem descortina qualquer instante, colocando a questão do tempo como experiência idiossincrática de discursos individuais perenes.
Lembremos o fotógrafo Brassaï ao escrever o livro Proust e a Fotografia (2005). Nele, a obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust é minuciosamente analisada a respeito da fotografia como memória involuntária e imagem latente – dois processos narrativos proustianos. Entretanto, o tempo pode se impregnar no sentido de distender-se, derramar-se. Assim, Brassaï reconhecia a capacidade de Proust em criar fotografias mentais. E acrescenta como o tempo perdido é revisto: “O escoar do tempo em si mesmo não lhe interessa. Por sinal, nunca fala de tomadas cinematográficas, mas sim de clichês, de instantâneos. Homem da descontinuidade, Proust é um fotógrafo, suas descrições são sempre imagens fixas, instantâneos, únicas capazes de tornar perceptíveis a mudança ocorrida, o tempo escoado, o envelhecimento” (Brassaï, 2005).
O tempo, portanto, perece ser o código que converge para territorialidades da memória, de um instante pontual, mas que sempre estará imerso no fluxo da alteridade. Aqui, entendemos que a fotografia é um campo imagético amalgamado entre representação e criação. Portanto, o mundo do outro traz a carga validada pela atmosfera indiciária, mas, sobretudo, pela complexidade de atmosferas simbólicas que irão corresponder à percepção de cada olhar. Emergem, então, as metáforas. A primeira fotografia passa a ser a partitura para outras imagens que virão e que não é mais superfície fotossensível. Sendo o tempo metafórico de construção de significados, até onde ele será abstrato?
Bem, nesse sentido, encontro em mim mesma experiências únicas. Vivi tempos distintos – heterogêneos em sua essência criativa – diante de ensaios fotográficos do cineasta russo Andrey Tarkovsky, com seu livro de polaroids (Instant Light. Tarkovsky Polaroids, 2004), e o da fotógrafa mexicana Graciela Iturbide com El baño de Frida Kahlo (2008). Os dois trabalhos são perpassados pela força de cenas sutis, profundamente testemunhais e suscitados pela criação de um tempo inexistente. As polaroids de Tarkovsky feitas entre 1979 e 1984 revelam-se num diário intimista, repleto de alegorias em busca pela essência das pessoas, lugares e objetos. Os espaços na fotografia de Tarkovsky representam o afeto e o rememorar. Seu tempo é objetivo, lacônico, impregnado de certa leveza… Nessas polaroids, a temporalidade se estende para a autobiografia do fotógrafo. Se compartilha cada imagem como atalhos para a intencionalidade de quem fotografa. Embora alguns momentos soem banais, nos envolvemos sem tempo de raciocinar, somos conduzidos pela fluidez da vida privada do autor que poderia ser a nossa. Sendo assim, o tempo surge como artefato de uma imperceptível transposição de realidades.
Tudo é diferente dentro do banheiro de Frida Kahlo. O peso do tempo desencadeia silenciosamente, arrastando-se por elementos visuais biográficos de Kahlo. Natural sentir estranhamento, natural sentir o gosto amargo de parte desta mulher híbrida, entre a sua obra vigorosa, cheia de simbolismos e sua vida permeada de dor. Os azulejos do ambiente fotografado parecem ter sidos incrustados pelo tempo de Frida. A poética desta artista habitava seu próprio corpo e seus sonhos. Difícil desprender-se de sua imagem corriqueiramente pintada envolta em símbolos.
Graciela Iturbide traz Frida despida, imatérica, sem meios tons ou véus. O colete doloroso impõe um tempo sem fim. O tempo de tragédias. Mas, há uma imagem que (de tão incisiva) cessa qualquer sensação mais depurada. Como num soco no plexo, Iturbide propõe a prótese da perna de Frida encostada num muro. Ali, tudo pára. Não há tempo… O silêncio invade a imagem e a dura realidade da existência se torna intolerável.
Talvez Roland Barthes tenha razão quando avalia que “quando uma obra extravasa o sentido que parece ter início, é porque nela há algo de Poético”, sendo este o suplemento do sentido. O tempo, de certa maneira, vai além do instante do registro indicial criando meios para que a latitude icônica reverbere pressupostos poéticos inventivos, ajudando-nos a pensar. “A imagem é aquilo que permanece”, escreveu o teórico francês Edmond Couchot. De tal modo, cabe considerarmos que não há esgotamento para os sentidos do tempo na fotografia. Sinceramente? Acho que a fotografia é a arte necessária para o tempo.
* Artigo publicado na FACOM – Revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, nº 23, 1º semestre de 2011, páginas 32-37.
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Bibliografia
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
_____. A Câmara clara: nota sobre a fotografia.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
BRASSAï. Proust e a fotografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BRETON, André; Eluard, Paul. Diccionario abreviado del surrealismo. Madrid: Ediciones Siruela, 2003.
COUCHOT, Edmond. Dialogues sur l’art et la technologie. Paris: L’Harmattan, 2001.
ITURBIDE, Graciela. El baño de Frida Kahlo. México: Editorial RM, 2008.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
_____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.
SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: Sobre o dispositivo fotográfico. Campinas, SP: Papirus, 1996.
TARKOVSKY, Andrey. Instant Light. Tarkovsky Polaroids. London: Thames & Hudson, 2004.
Foto estereoscópica. “Our Father wich art in Heaven” – Coleção “The ‘Perfect’ Stereograph”, 1903.