Gilvan Barreto, fotógrafo pernambucano e morador do Rio de Janeiro, tem estado inquieto nos últimos anos. O resultado são dois livros que se destacam neste boom de fotolivros que assola por aí. Gilvan não deixa para trás as suas origens de jornalista, contador de histórias, fotógrafo que sai rodando pelas estradas. Porém, não acreditem muito no que ele conta. Pode ser só uma coversa de sertanejo, um causo.
Acaba de sair da gráfica o segundo livro de Gilvan: O Livro do Sol (Tempo d’Imagens, 2013). Por aqui, tivemos o prazer de acompanhar de perto e Georgia editou as fotografias do livro junto com Gilvan. Abaixo, algumas imagens do livro.
Aqui, Gilvan Barreto na seção Análise de imagem. Aqui, exposição Arqueologia de Ficções.
Autorretrato
Há limites para a fotografia?
A fotografia hoje é amplamente utilizada por artistas das mais variadas vertentes. Mas ela não faz, necessariamente, o caminho de volta. Em muitos momentos vira um mero registro das outras expressões artísticas. Tentando evitar o factual, a dependência do “real”, esbarro em outras linguagens, outros suportes e técnicas. Sinto a necessidade de criar objetos, manipular fisicamente os elementos das imagens. A literatura e o cinema são complementares e/ou base para minha fotografia. Há uma grande mistura na minha maneira de criar. Gosto de especular sobre estes limites, praticar essa “impossibilidade”. Criar imagens como se estivesse escrevendo. Editar, planejar, roteirizar como se estivevesse fazendo um filme.
A sua fotografia é uma fabulação da realidade ou a insistência do vigor em procurar respostas?
Tento refletir sobre como os fatos me afetaram. É um movimento inverso ao de tentar imprimir como se deram os fatos. A representação desta memória afetiva não é uma ficção solta e descomprometida. Ela é uma fiel documentação de vivências. A realidade como a mais bruta representação dos sentimentos. Acho que minhas imagens remetem mais ás dúvidas, que às respostas. Os questionamentos alimentam a reflexão. As afirmações e imposições fecham muitos sentidos, polarizam ou até encerram mesmo a discussão.
Chegamos a algum lugar através das imagens fotográficas?
Levando a pergunta ao pé da letra, a fotografia me colocou para andar muito. Viajei muito dentro e fora do Brasil colecionando histórias das pessoas que encontrei por aí. Há alguns anos estou interessado no movimento contrário. Mergulhos lentos e profundos onde o deslocamento geográfico é mínimo ou nulo. Minhas inquietações é que viajam para buscar conexão com outras pessoas. Assim nossas imagens chegam aos olhos de outros que, eventualmente se identificam. Intimamente, acredito que chegamos as nossas origens, ao nosso reflexo. Viajamos no tempo, na memória.
Chegamos também a uma zona de estranhamento e desconforto que é o encontro do nosso imaginário com as coisas que nos cercam.
A tendência é que nossa produção, não importando a vertente, vire memória e documento de nossa época. Inclusive as ficções, já que ao meu ver, nascem pricipalmente das tensões que nos cercam.
E neste sentido eu uso a fotografia como uma escrita. Elaboro, escrevo, registro e guardo as percepções do que vivemos a cada dia. Então penso que essa história precisa ser escrita de alguma forma. Porque ela me interessa. Nesse sentido, sinto que chego em algum lugar quando uso a fotografia, ainda que nem sempre seja confortável.
Por que precisamos da fotografia? Ou melhor, precisamos da fotografia nas nossas vidas?
Para mim é muito importante. Mas não arriscaria a ficar alardeando que “nasci para isso”, que “meu ofício é minha vida”… Todas essas coisas que ouvimos muito por aí. O importante é ter prazer em faze-la. É fazer com sua verdade. Dar voz até para suas contradições e inquietações. Gerar reflexões, prazer, raivas, micro revoluções íntimas. Fortes imagens devem nascer dessa peleja.
Como (e quando) a fotografia entrou na sua vida?
Comecei fotografar quando fui morar em Londres, meados dos anos 1990. Naquela época eu já era um ex-baterista (mal sucedido). risos… Maluco por cinema e poesia, a fotografia entrou no meio dessa duas paixões. O Recife vivia a euforia do Maguebeat e o reconhecimento nacional do cinema feito lá. Toda essa mistura me influenciou muito.
Depois de alguns anos e muitas viagens fotografando, comecei a trabalhar como fotojornalista. Foi uma passagem rápida mas intensa. Em 1999 me mudei para São Paulo para trabalhar na revista Caminhos da Terra (hoje extinta). Por esta revista viajei muito pelo Brasil, África, Américas, Europa e um pouquinho na Ásia. Depois pedi demissão e virei freelancer mas não aguentei o cotidiano de SP. Voltei lá pra beira do Capibaribe. Queria pegar uma sombra, passar uns 30, 40 dias por lá mas terminei passando 4 anos.
Atualmente, vivo no Rio de Janeiro há quase 8 anos, o que em alguns aspectos é o meio termo entre SP e Recife. Cada momento de vida, cada paisagem dessas que habitei ou conheci, influencia muito na minha produção. Penso que o que importa é que a fotografia continua entrando na minha vida. Renasce de formas diferentes, em tempos e medidas diferentes, conforme vou me relacionando com ela e com a minha propria história, momento, narrativa. E nesse ponto preciso dizer que de alguma forma a fotografia está sempre entrando ou saindo da minha vida.
O Livro seduz e satisfaz o desejo do fotógrafo/autor em mostrar e abarcar a sua obra?
A produção de livros é atualmente o meu maior interesse na fotografia. Ainda estou lançando meu segundo livro. Mas há vários outros projetos engatilhados. Cada um em sua fase. Cada um deles no seu ritmo, criando seus próprios pilares e rusgas. O processo é meio lento, isso gera certa ansiedade. Enquanto isso vou lapidando as histórias. Se tudo der certo, tem muita novidade boa por vir.
Penso nas imagens para um livro como Ideias ordenadas trabalhando em favor do seu discurso. Uma história que tem começo meio e fim. Um livro de fotografia como uma aposta, como um ato de ousadia, de disponibilidade a corer riscos em busca de narrativas diferenciadas. Viver de fotografia no Brasil pode ser considerado muito atrevimento, não? Publicar livros então… Haveria sentido procurar um caminho seguro no meio dessa guerrilha?
Não me interesso muito por publicações que pareçam “livros-portfólio”, que tentem dar uma amostra da habilidade do autor. Comparando com a música, o bom livro de fotografia que busco é uma composição, não é a virtuose de um solista. Por isso a preocupação com a edição pensando no conjunto. Por isso, por melhor que seja a imagem isoladamente, procuro não proteger, me apegar à imagens que não sirvam à narrativa. Por outro lado, encaro com traquilidade o uso de imagens que talvez nao funcionem fora do contexto.
Busco o livro que tende a ser perene, ter longevidade. Não importa quando foi lançado. Tem sempre o poder de trazer novas revelações. Temos ciclos de interesses e apitidoes. Há livros abandonados que voltam a viver em nossas cabeceiras. É assim minha relação com a leitura. E é isso queria trazer para minhas publicações.
A intenção é de criar um livro que não se esgote na primeira olhada. Sabe aquele livro que você recorre a ele vez por outras para tirar um dúvida, para relembrar, rever? Uma das minhas primeiras alegrias que tive ao lançar o Moscouzinho, foram as queixas que ouvi de uma jornalista. Ela contava que um parte de seus colegas de redação embarcou na história de imediato, outro pedaço estava incomodado porque não conseguia separar a ficção da realidade. Era realidade ou não? Real em que aspecto? E o que importa se era verdade ou não? Se foi vivido ou sentido? Saber disso é realmente importante? O importante não é a criação e o que isso nos provoca? De qualquer maneira, posso afirmar que era tudo verdade. Fui eu mesmo que sonhei cada pedacinho daquela realidade.
Qual o desafio no segundo livro após o sucesso de Moscouzinho?
No Brasil, costumamos entender que um livro faz sucesso quando vende bem nas livrarias. Este não é exatamente o caso de Moscouzinho, e se quer existe uma tiragem para tanto. Até evitei as grandes livrarias. A maioria dos exemplares adquiridos saiu das minhas mãos durante festivais e palestras. Porém, se você pensar no quanto é difícil se expressar artísticamente no Brasil, no quanto de tempo, trabalho e investimentos pessoais depositamos antes que qualquer projeto se realize de fato, então nesse sentido considero Moscouzinho um sucesso. Um sucesso porque de alguma forma ele cumpre o seu propósito: uma realização e expressão pessoal nas quais aprendi muito sobre criação artística e também seus processos.
E também uma realização que tem, em maior ou menor medida, proporcionado reflexões torno da fotografia. Isso é incríivel. Quanta gente bacana analisou, escreveu, sugeriu o Moscouzinho… E a equipe que se formou em torno de uma ideia esquisita de um autor de primeiro livro? Luxo, né?
Moscouzinho foi feito num processo longo, quase 4 anos escrevendo, desenhando, pesquisando… Para reinventar minhas memórias, para criar os símbolos desse território emocional. Neste segunda publicação, O Livro do Sol, eu quis reverter o processo. Fiz um road book, ou melhor, um livro de “rodagem” como diriam os sertanejos. Peguei a estrada sem cartas nas mangas, sem objetivos predefinidos. Viajava apenas com duas ideias fixas; a água e a poesia de João Cabral.
É o resultado de um mês viajando pelo sertão no auge da maior seca dos últimos 60 anos. Mas não me interessava fazer um diário fotográfico. Não queria um livro de estrada com anotações no caderninho, diário de bordo repleto de casualidades. Não busco o instante decisivo, declinei os instâtaneos. O livro tinha que ser mais uma reflexão sobre essa imersão que um registro dessa expeirência.
O Livro do Sol investe numa costura improvável entre o sertão sedento e o desejo de água. Entre os sonhos e as necessidades, entre mortes e vidas. Apesar do que o título pode sugerir, aqui não é o sol nascente que interessa. Mas o sol que evitamos, o sol que seca e destrói as coisas por lá: “O Monstro do Sertão”. Uma fotografia que opera nas sombras pesadas desse sol. Este é um livro dos contrastes.
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