A Fotografia morreu. Viva a Fotografia!

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Foto: Liljenquist Family Collection/The Library of Congress – Garota com roupa de luto segurando foto do seu pai, Guerra Civil Americana, 1861-1865.

Publicamos hoje o artigo completo A Fotografia morreu. Viva a Fotografia! do fotógrafo e pesquisador Pedro Karp Vasquez. Parte deste texto foi publicado no jornal O Globo. Veja aqui.

Aqui, A foto que eu queria ter feito de Pedro.

A FOTOGRAFIA MORREU. VIVA A FOTOGRAFIA!

Apesar de coincidir com o fim de uma tradição de século e meio, vivemos hoje um dos períodos mais ricos e empolgantes da história da fotografia, equivalente apenas ao dos seus primórdios, quando as invenções também se sucediam em ritmo intenso e ininterrupto.

O atual período de transição da fotografia tradicional (de base química e suporte de película) para a imagem digital – teve início em 1973 (quando a Fairchild Imaging produziu o primeiro CCD comercial de 0,01 Megapixel!) ganhou velocidade na década de 1990 (com a ampla difusão das câmaras digitais) e só deve terminar na corrente década, quando os telefones celulares sepultarem definitivamente as câmaras fotográficas e videográficas amadoras, assumindo inteiramente suas funções. É um período que marca o fim de uma época e o nascimento de outra, de dimensões incalculáveis até mesmo para os inventores e os cientistas. Sim, pois quem, ao assistir ao lançamento da Mavica da Sony em 1981 (a primeira câmara de vídeo estático, com resolução de 0,3 Megapixel), poderia antecipar o surgimento, apenas duas décadas mais tarde, de um telefone com 41 Megapixels? Mas aí está o Nokia Lumia 1020…

O QUE É BOM SEMPRE PODE FICAR MELHOR

Não faltaram, nesse meio tempo, as aves de mau-agouro e os catastrofistas para anunciar “o fim da fotografia”, provocado pela imagem digital, ou o “fim da verdade fotográfica”, causado pelo Photoshop. Mas o fato é que a fotografia nunca esteve tão viva e, por outro lado, a suposta verdade fotográfica nunca existiu. A fotografia sempre foi falsa, tendenciosa e mentirosa (em outras palavras: humana), porém dotada de insuperável capacidade de reprodução fidedigna do mundo visível. Mas nitidez e precisão nada têm a ver com ética e verdade, e o pouco que se perdeu foi amplamente compensado pelo muito que se ganhou. Inclusive sob o ponto de vista da preservação ambiental, se lembrarmos que a fotografia de suporte de película trabalhava com derivados de petróleo (o próprio filme em si), com gelatina animal (a camada ligante) e sais de prata (metal nobre para cuja extração se explorou durante muito tempo o trabalho infantil), além de produtos químicos danosos à saúde e poluidores do meio ambiente. Em comparação, a imagem digital é uma tecnologia “limpa”, se abstrairmos do problema representado pelas baterias dos telefones, das câmaras e dos computadores. Mas, a sabedoria popular já nos ensinou que “não existe paraíso sem mosquito”, de modo que, todas as contas feitas, o balanço é positivo, sobretudo em termos econômicos, já que o digital sai “de graça”, democratizando assim a prática da fotografia.

O FUTURO HOJE

Na década de 1920 (quase um século atrás) o célebre professor e teórico da Bauhaus – além de artista plástico, fotógrafo e cineasta –, László Moholy-Nagy, afirmou que “o analfabeto do futuro será aquele que não souber fotografar”. Palavras proféticas que o futuro daquele passado – o tempo presente – confirmou de múltiplas formas. Na condição de primeiro meio de imagem técnica, a fotografia esteve na origem de todas as disciplinas técnicas visuais e todas as tecnologias da imagem que a sucederam: das mais prosaicas, como a fotocópia (a popular xerox), às mais fundamentais, como os exames de raios-x, a ressonância magnética, e a astrofotografia. Neste particular é interessante lembrar que foi a astrofotografia que possibilitou ver onde estamos, ao mesmo tempo em que já começa a vislumbrar de onde viemos e para onde vamos…

Com efeito, em 2009 os cientistas franceses Serge Brunier e Frédéric Tapissier conseguiram representar pela primeira vez nossa galáxia, a Via Láctea, numa única imagem, composta por 1.200 fotografias realizadas entre agosto de 2008 e fevereiro de 2009. Ao passo que telescópios espaciais como o Hubble ou o Herschel, conseguem fotografar tanto o passado – na forma de estrelas mortas cuja luz ainda é visível – e o futuro, ao registrar o nascimento de estrelas jovens. Para entender melhor isso, ver o site da Agência Espacial Europeia em português.

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA

Mas e a “fotografia de verdade” em tudo isso? Ela realmente acabou? Absolutamente. A fotografia clássica não só não acabou, como se renovou de forma surpreendente encontrando a cada dia novos caminhos expressivos para a fotografia de suporte de película, como também ressuscitando processos históricos de outras naturezas, como a daguerreotipia (cuja base é uma placa de cobre) ou a ferrotipia, que emprega como suporte uma fina lâmina de ferro, conforme seu nome indica. E, o mais interessante, é que essa recuperação de processos históricos do século XIX tem se dado sobretudo pelos artistas plásticos de vanguarda, como aqueles ligados à Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

Da EAV saíram alguns dos nomes mais expressivos das artes visuais brasileiras que trabalham prioritária ou exclusivamente com fotografia, como Rosangela Rennó, Paula Troppe e Rochelle Costi. Antecedidos por ilustres predecessores como Alair Gomes, Miguel Rio Branco, Maria do Carmo Secco, Anna Bella Geiger que ensinaram e/ou ali expuseram na época em que Rubem Gerchman era diretor da escola. E lá hoje pontifica no curso de Fotografia Expandida, Denise Cathilina, que entre outros processos pioneiros ensina o da cianotipia, inventado na década de 1840 pelo astrônomo e matemático inglês Sir John Herschel, em cuja homenagem foi batizado o citado telescópio. Tendo sido ele também quem sugeriu o uso generalizado do termo photography, para designar os diferentes processos então existentes. Termo depois apropriado por aquela que nasceu como imagem digital e passou a ser chamada de forma irreversível de fotografia digital, de tal forma que hoje a “verdadeira fotografia” a exibir curiosos penduricalhos, como: “fotografia analógica” ou “fotografia pré-digital”. Neste sentido, não há nada a fazer. É caso similar ao da “livraria de tijolo”, surgida após o advento das livrarias virtuais.

Mas, seja como for, a fotografia de película resiste e insiste, encontrando novos caminhos, como o da Lomography, que é muito mais do que uma marca ou um produto: é todo um universo visual responsável por ressuscitar ou criar diversas câmaras e diferentes formatos de filmes, das Instamatic (de filme 110), apelidadas aqui no Brasil de “xeretas”, à Lubitel russa (de filme 120, semelhante à Rolleiflex usada pelos fotógrafos de O Cruzeiro na fase áurea da revista). Isto, passando pela popular La Sardina (de filme de 35 mm), e por incríveis câmaras panorâmicas, como a Spinner 360º, que tem papel determinante na trama de Palermo Shooting, de Wim Wenders, levando o fotógrafo interpretado pelo astro de rock alemão Campino a ter um diálogo sui generis com a Morte a respeito da oposição entre a fotografia clássica e a imagem digital. Tradicionalista, é claro que a Morte prefere a clássica, por achar a digital imediatista demais. O mais fascinante neste filme é o subtexto fotográfico, já que a Morte é interpretada por Denis Hopper, ele próprio um ótimo fotógrafo. Enquanto Wenders também é um excelente fotógrafo (que apresentou seus panoramas na edição de 1996 da Bienal de São Paulo), casado com uma fotógrafa, Donata Wenders, que costuma desenvolver projetos de livros a partir dos filmes do ilustre marido. Sem esquecer que a ação tem início em Dusseldorf, cidade natal do cineasta e sede da vanguarda fotográfica alemã, que tem em Andreas Gursky seu nome mais emblemático e mais valorizado pelo mercado de arte. Vale a pena dar uma passeada por: http://www.wim-wenders.com/. Sem esquecer também de dar um salto em Lomography: The Home of Creative Analogue Photography.

Vito?ria Maria de Melo - [Pinhole] Ma?o na LataFoto: Vito?ria Maria de Melo – [Pinhole] Ma?o na Lata

DO PALÁCIO À FAVELA

Assim como ocorreu na Inglaterra – onde a rainha Victoria e o príncipe Albert eram entusiastas da nova invenção – a fotografia se beneficiou aqui no Brasil da proteção da autoridade máxima da nação, o imperador Pedro II. Primeiro fotógrafo de nacionalidade brasileira, Dom Pedro concedeu o título de Fotógrafo da Casa Imperial a diversos profissionais, patrocinou projetos na área e constituiu aquela que foi talvez a maior coleção particular de fotografia de seu tempo. Acervo que nobremente ofertou à Biblioteca Nacional por ocasião de seu injusto banimento do país. Fez uma única exigência em troca deste impagável presente: que a coleção recebesse o nome da esposa e não o dele. Hoje, conservada sob a denominação de Coleção Dona Thereza Christina Maria, esta coleção integra o Programa Memória do Mundo da Unesco, e com suas 23 mil imagens, constitui uma fonte inesgotável de pesquisa e deleite. Ver: http://bndigital.bn.br/dossies/colecao-d-thereza-christina-maria-albuns-fotograficos/

Protegida em berço esplêndido durante o século XIX, a fotografia brasileira viceja hoje nos ambientes mais variados e desfavorecidos, dando voz e força a uma série de movimentos sociais da maior importância, que encontram nos encontros de Inclusão Visual do Rio de Janeiro, realizados no âmbito do FotoRio, um fórum privilegiado de discussão e difusão. Impossível mencionar todos aqui, mas vale citar o eloquente exemplo da Favela da Maré, verdadeiro celeiro de fotógrafos, que revelou nomes como os de Ratão Diniz ou do Coletivo Fotográfico Pandilla (integrado por Américo Júnior, Bruno Morais e Léo Melo), graças ao exemplar projeto Imagens do Povo, que completará uma década de existência no próximo ano. O projeto tem até um espaço próprio de exposição, a Galeria 535 [Rua Teixeira Ribeiro, 535 – Bonsucesso], que não se limita a expor apenas trabalhos dos alunos, recebendo também obras de nomes consagrados que apoiam o projeto idealizado por João Roberto Ripper – verdadeiro mahatma da fotografia carioca –, com o suporte pedagógico de Dante Gastaldoni. Vale a pena fazer uma visita virtual como preparação para uma visita presencial: http://www.imagensdopovo.org.br/

Cidade dentro da cidade, a Favela da Maré é hoje uma das zonas mais vibrantes e culturalmente ricas do Rio, com projetos que já conquistaram inclusive reconhecimento internacional. Impossível citar todos aqueles merecedores de menção, mas não se pode esquecer do Mão na Lata, criado pela fotógrafa e designer Tatiana Altberg em 2003, no âmbito da Redes de Desenvolvimento da Maré, como um grupo de pinhole [fotografia tirada com câmaras feitas à mão]. Ano passado os alunos lançaram o livro Cada dia meu pensamento é diferente, interessantíssimo do ponto de vista criativo e de forte conteúdo simbólico, visto que baseado na obra de Machado de Assis, nascido no Morro da Providência, o primeiro a receber a denominação de “favela”, ainda no século XIX. Assim, o grande escritor oitocentista, que soube vencer as barreiras sociais por intermédio da literatura, teve sua obra revisitada por 15 crianças moradoras na favela do século XXI, que porventura podem encontrar na arte e na literatura a via de escape e de superação da adversidade. Ver: http://www.maonalata.com.br/index

O PRETO E BRANCO E TODAS AS CORES

Sebastião Salgado é hoje o fotojornalista mais conhecido do mundo, associado no imaginário coletivo à grande tradição da fotografia em preto e branco. Isso todos sabem, mas o que alguns porventura ignoram é o fato de que há muito Salgado já abandonou a mitológica Leica que inaugurou o universo da fotografia em 35 mm pelas câmaras digitais. Todo o espetacular projeto Gênesis, que consumiu oito anos de trabalho e deu origem ao livro e à exposição de mesmo título foi feito em digital. Salgado opera inclusive na contramão do diálogo entre a fotografia clássica e a digital, pois agora realiza a captura de imagem com o processo digital e só depois, eventualmente, produz um negativo convencional para a realização das ampliações em papel fotográfico tradicional. Parte assim do numérique para o argentique, como dizem os franceses hábeis em complicar elegantemente as coisas. Numérique correspondendo ao que o resto do mundo chama de digital, e argentique correspondendo ao processo de papel de fibra e emulsão de prata e gelatina, que se convencionou chamar de fotografia analógica.

Outro exemplo fascinante de inter-relacionamento de técnicas tradicionais e das novas tecnologias é o de Mestre Júlio, tema do filme Retrato Pintado, de Joe Pimentel. Antes de ser mestre, em meados do século passado, ele era apenas Júlio Santos, menino de 12 anos, aprendiz do Áureo Studio, de Fortaleza, estabelecimento especializado em colorir e retocar fotografias numa tradição mais tipicamente nordestina, porém encontrada também em outras regiões do país. Júlio e seus colegas não tinham mãos a medir para atender a clientela interessada não só em ver coloridas fotografias em preto e branco, como também elegantemente vestidos (com roupas de casamento, por exemplo) personagens extraídos de simples retratos em 3 x 4. Ou até, milagre maior, “abrir os olhos” em retratos de pessoas mortas, de modo a oferecer uma recordação mais palatável aos familiares. Hoje, já consagrado com o apelido honroso de Mestre Júlio, ele continua na ativa, tendo trocado as tintas e os pinceis pelo computador e o programa Photoshop, tendo percorrido assim todas as etapas da história da fotografia.

Para finalizar vale lembrar o Kodachrome, unanimemente aclamado como o melhor filme colorido de todos os tempos. Era diapositivo, filme colorido positivo, popularmente denominado de “slide” ou, aqui no Brasil, de “cromo”. Do ponto de vista fotográfico era perfeito, mas como tudo tem seu lado B, apresentava um inconveniente de peso: seu processamento era extremamente poluente. E complexo também, de tal forma que só era realizado em pouquíssimos países. Sua extinção era, portanto, inevitável e, de fato, sua produção foi encerrada em 2010. Mas foi devidamente celebrada por intermédio de um verdadeiro réquiem visual: a Kodak entregou a última bobina de Kodachrome para o grande Steve McCurry, da revista National Geographic, que muitos podem não conhecer de nome, mas certamente conhecem uma imagem de sua autoria, que é a verdadeira Mona Lisa da fotografia, intitulada Afghan Girl – o retrato de Sharbat Gula, fotografada aos 12 anos de idade, num campo de refugiados, em 1984. McCurry começou a expor o filme de 36 poses em Nova York e o terminou na Índia, num périplo inesquecível documentado pelo canal de TV da National Geographic, e que vale a pena assistir (veja aqui).

É o fim de uma era, mas não o fim da fotografia, que se reinventa a cada momento em que alguém pressiona o disparador de uma câmara ou de um celular. A Anatel afirma existir hoje no Brasil cerca de 267 milhões de celulares ativos, para uma população estimada pelo IBGE em 198,7 milhões. Ou seja: temos hoje no Brasil mais fotógrafos do que gente… É ou não é o melhor dos mundos?

Pedro Karp Vasquez – Escritor e fotógrafo, responsável pela criação do Instituto Nacional de Fotografia da Funarte e do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do MAM/RJ.

SERIE CASA-03Foto: Alexandre Belém – Série Casa, 2012

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