Foto: J. J. Oliveira – Domingos Ramos de Andrade Lima e família – Recife, c.1890-1899
Eles sempre estiveram lá. Cada um ao seu modo. Alegres, sisudos, às vezes com um quê de melancolia no olhar, mas sempre impávidos e solenes. Alguns sabem que podem seduzir, criar um jogo de aparências. Outros, em sua simplicidade, na verdade, sabem muito pouco sobre o que os cercam. O certo é que a vida era dura para uns e de muito fausto para outros. Que as diferenças se pautavam por questões cromáticas da pele: o preto e o branco. Que as mulheres, presas em seus sombrios vestidos, também transbordavam silêncios e limites. E os homens, por sua vez, numa espécie de simbiose, simbolizavam a terra, a política, o dinheiro, a propriedade de bens e, até mesmo, de pessoas. Em suma, o sexo masculino personificava o poder, o eixo que movia uma estrutura social. Para mim, sempre foi desafiador encontrá-los e de forma recorrente perceber que cada um desejava esclarecer certas questões, aclarar situações nebulosas, ou seja, dar suas versões sobre os fatos.
Nos primeiros encontros, o que prevalecia era o silêncio. Sentia que a vida deles estava submersa sob rígida camada de convenções sociais de uma época. As diferenças eram muitas. Basicamente, este mundo não pertencia a um território físico, mas à construção idealizada de um contexto cultural bastante próprio. Ao vê-los, era claro a dinâmica daquela realidade. Quase que postos em nichos simbólicos, firmes em seus papéis e propósitos. De fato, se revelavam à medida que lhes davam atenção, no momento em que o registro fotográfico os perpetuava – não só com relação ao semblante, à postura, mas a todos os signos e significados inerentes à corporeidade do indivíduo.
Foi assim que “adentrei” no universo da Coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco). Trata-se de um dos mais importantes acervos fotográficos do Brasil, que guarda a memória visual da história social do século XIX e início do XX. Mérito do esforço e paixão do dentista pernambucano, chamado Augusto Rodrigues, que em 1927, iniciou sua coleção particular de fotografias. Tal patrimônio cultural existe devido a sua dedicação em adquirir retratos da sociedade pernambucana daqueles séculos. Seu filho, Francisco Rodrigues, prosseguiu na trilha do colecionismo paterno. Em 1958, contabilizava 12 mil fotografias e se encontrava no Museu do Açúcar. E, em 1974, a coleção foi incorporada a Fundação Joaquim Nabuco.
Desde então, a coleção cresceu, através de doações, e hoje comporta mais de 17 mil imagens. Nelas, pude investigar e inventariar as possibilidades de análise que o suporte fotográfico detém. Ou como diria Pierre Bourdieu, compreender adequadamente uma fotografia não é apenas recuperar as significações que proclama, é também decifrar o que vai além do significado que revela, na medida em que participa dos símbolos de uma época, de uma classe social. Nesse sentido, a partir dos retratos de família da aristocracia canavieira, centrei minha pesquisa que resultou na tese de doutoramento em Antropologia, pela Universidade de Salamanca (Espanha). A iconografia revelou-se repleta de narrativas antropológicas, edificadas pela “economia do açúcar” (um dos aspectos mais relevantes da sociedade brasileira desde o tempo do Brasil colonial). De maneira que as imagens estabelecem aspectos diretos para análise de temas como relações sociais, parentesco, as fases e rituais simbólicos da vida familiar, assim como os costumes da sociedade patriarcal e escravocrata. Enfim, sutilezas da vida privada, que conotavam elementos ligados ao “espírito” de opulência dos protagonistas da casa-grande (núcleo familiar patriarcal) em contraponto a índices visuais importantes sobre os negros.
Os retratos que integravam os álbuns de famílias refletiam e representavam o fluxo de idéias e da relevância de distinções sociais. Fica claro que registrar o indivíduo através da fotografia transcendia a individualidade física, ou seja, contemplava o significado social que os retratados possuíam naquela sociedade canavieira oitocentista. A natureza fotográfica, em essência, indicial e de incontestável analogia ao seu referente, instaurava, sobretudo, representações e perspectivas. Portanto, o registro visual definia papéis sociais e delimitava os limites – numa espécie de território visual – entre senhores de engenho e camadas menos abastadas, incluindo a submissa e sempre presente na vida privada senhorial, a dos escravos. Ou seja, as imagens fotográficas, acima de tudo, representavam status social e a legitimação de um discurso sócio-cultural patriarcal-escravocrata.
Mas a memória é sutil assim como ínfimos gestos. Estes corroboram para a condição feminina quando retratadas com seus maridos – respeitados senhores de engenho, em muitos casos, com títulos nobreza de viscondes e barões. A postura feminina era de deferência, de pé ao lado do homem. O toque entre ambos revelava sinal de respeito, no máximo transmitido pelo gesto suave de repousar a mão no ombro do patriarca. O carinho, tão óbvio implícito aos retratos de família que fomos acostumados a contemplar, não está presente. A austeridade honorífica dos retratos restringia o toque, o aconchego até mesmo de mães com seus filhos. Entretanto, sob a perspectiva inter-racial dos relacionamentos, se destacam as imagens de amas-de-leite ou de escravas que amamentavam e cuidavam das crianças da aristocracia canavieira de Pernambuco. Nelas, o afeto, mais velado que contundente, estabelece uma tensão pela proximidade dos corpos que por si só conotam uma história estreita de dedicação com aqueles bebês e crianças.
A partir do discurso inerente aos álbuns de fotografias, vemos “desfilar” famílias numerosas, pelas quais podemos acompanhar o crescimento dos filhos e os caminhos que estes seguiam. Os meninos que se tornavam bacharéis, políticos ou religiosos; meninas que permanecem no núcleo familiar e que precocemente originam outros. Crianças de todas as idades, documentadas em rituais religiosos como o batismo e a primeira comunhão. A mulher, símbolo matriarcal da família oligárquica canavieira, fora representada com signo estético ligado à perfeição e à fragilidade (quase cruzando a linha tênue da frivolidade da exuberância de adornos e roupas). Importantes enquanto “moeda de mercado”, o futuro era certo e inadiável: o casamento. Através deles, muitas famílias ampliavam suas riquezas, territórios se alargavam, escravos se acumulavam e a cana-de-açúcar se convertia em prestígio, riqueza e poder. Em particular, essas meninas vestidas de branco na primeira comunhão eram quase um presságio visual para o casamento que dentro em pouco estava por advir.
Ser perenizado pelo enquadramento da imagem fotográfica significava sublinhar a identidade de acordo com normas sociais. De certo, as fotografias dos negros revelam um panorama significativo sobre o uso e a representação destes indivíduos. Em paralelo, aos retratos que “alimentavam” a curiosidade sobre o exotismo dos escravos africanos e seus descendentes nos trópicos, percebemos que tais imagens seguiam uma seleção bastante particular. E nesse ponto, ressaltamos uma dualidade fundante sobre a existência dessas fotografias. Pois, ao passo que os escravos eram escolhidos (provavelmente, os mais próximos do convívio privado, os escravos domésticos), a forma como o registro era feito mostrava uma dicotomia bem específica. Ou bem se apresentavam em retratos onde se conta a dignidade do indivíduo, ou bem se enfatiza a função do escravo (o caracterizando em seu ofício).
Nesse sentido, encontramos elementos icônicos que “entram” no enquadramento por acaso e que possuem uma simbologia antropológica de extrema relevância. Como pudemos constatar nos retratos em que escravos estão sempre nos limites da composição fotográfica, de soslaio, observando o momento da foto, à margem da imagem dos outros. De certo, a margem que perpassava a essência de sua própria vida e condição social: a escravidão.
Assim, diante de uma realidade imagética própria a uma sociedade meticulosamente ciente do valor simbólico da imagem, o caminho da memória foi refeito. Descortinar essas lembranças, a vida de outros, é também o encontro com nós mesmos. Desde o início, buscava esse fluxo espelhado. Entender, sobretudo, os sentidos culturais em histórias de vida de um tempo bem guardado na imagem fotográfica. Diria que Marcel Proust ilustra a dimensão desta busca, pois a verdadeira viagem da investigação não consiste em procurar novas paisagens, mas sim em ter novos olhos.
* Artigo publicado no Pernambuco – Suplemento Cultural (agosto de 2008) sobre as fotografias da Coleção Francisco Rodrigues.
Olá, Georgia
Não a conheço pessoalmente mas a parabenizo pelo seu trabalho que é muito consistente, conheço seu marido, de quem sou fã. Sou fotógrafa, trabalho na Folha de PE há 10 anos e fazia um tempo que procurava alguma coisa que me desse prazer de pesquisar para fazer um mestrado. (Ou ia realmente deixar a fotografia, cheguei a me matricular num curso pra concurso, que já está pago, e me abraçar à razão, por salário, estabilidade…) Descobri alguma coisa ainda não bem definida com álbum de família. Vi que sua tese de doutorado foi sobre a Coleção Francisco Rodrigues, da Fundaj e gostaria de saber se vc pode me ajudar ou indicar alguém com quem eu possa conversar pra ver se chego no foco da minha pesquisa. Obrigada, Cristiana Dias