Passagens da morte ou a memória da morte na fotografia?
Neste feriado de Natal, assisti ao delicado filme japonês A Partida (2008), de Yojiro Takita e premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2009. Comecei a vê-lo sem muitas expectativas. Até que, iniciou-se algumas questões referentes à morte e memória. Dois temas sobre os quais tenho me debruçado. Como numa pós ressaca, a presença da imagem da morte veio crescente com a força certa, mas lenta de uma maré que não esperava naquele dia me envolver. Ao longo do filme, passei a lembrar insistentemente de um trabalho de Rosângela Rennó, chamado Apagamento (2005).
Tanto no filme como no ensaio da artista Rosângela Rennó se estabelece a experiência do confronto direto entre a imagem da morte e o tempo. As duas obras são norteadas pela percepção agregadora de intuição, lirismo e memória. Essas noções são articuladas pelo estatuto da memória que se reinventa enquanto linguagem e do espírito ao dar sentido aos universos artísticos que trabalham com a fotografia enquanto construção de significado. A morte proposta por Rosangela Rennó é a estrada indevida numa viagem que se inicia sem planos e mapas. É a dúvida, o suspense do ir e não saber se há chegada. A cartografia mortuária criada pela artista é realizada a partir de fotografias policiais de cenas de crimes em processo de investigação.
O ensaio “Apagamento” de Rennó é o desterro para o nosso estado sereno de contemplação. A morte do anônimo é categoricamente desconstruída, devolvida a nós por Rennó em partes residuais… A memória torna-se fictícia, pois a sedução surge e nos ciceroneia naquelas cenas de crimes non sense. Os apagamentos de Rennó impulsionam ao olhar curioso, a vislumbrar o entendimento não dos corpos sem vida, mas da vida deixada nas fotografias. A motivação do crime dissipa-se diante das possibilidades de leituras que os vestígios na imagem revelam. A morte é apenas uma pista.
A fotografia da morte potencializa retóricas. Além de possuírem representatividades na constituição das relações sociais, dos estágios do luto, do afeto, assim como dos fatores que apreendem o diálogo entre círculo de parentes e seu ente que morrera. Assim, a fotografia mortuária intrínseca à história da fotografia trabalha com questões íntimas, de guarda e de memória. Sobretudo, do registro da última imagem. Vejamos a consideração de Joan Fontcuberta ao assinalar que “o modelo, que encontra a fotografia como morte nasce da dimensão temporal da fotografia”. Mas, ainda lembra Pierre de Fenoyl que diz: “a fotografia não é senão um combate com o tempo”.
“A Partida” é de uma beleza desconcertante, sensível e preciso com relação aos sentidos culturais inerentes aos ritos de passagem que envolvem a morte. Acompanhamos um Nakanshi, espécie de agente funerário na cultura japonesa e sua atividade essencial na “passagem” do corpo. Liturgicamente, lava-se o corpo minuciosamente, no ritual chamado de acondicionamento. A tradição agrupa a família ante a preparação do corpo até ser colocado no caixão. Tudo é realizado com a delicadeza do respeito e da singularidade da história da vida e do tempo da pessoa morta. Não se trata de agentes funerários, e sim de “artesãos” que restauram a imagem de amor e carinho, em meio à dor e ao luto.
O filme caracteriza a força do retrato fotográfico e da imagem que se deseja guardar na memória da pessoa que amamos ou possuímos laços fraternos. Dessa forma, a maquiagem realizada devolve a ilusão da vida, do pertencimento da pessoa querida, de sua representação no núcleo familiar. Numa cena, o familiar contesta que a pessoa não se parece em nada com o retrato posto no ambiente fúnebre e que serve de modelo para o profissional. Em outra, após ver a mulher morta lindamente maquiada, penteada e arrumada para seguir, revela o marido: “Minha mulher estava mais linda do que nunca”.
Portanto, qual o lugar do nosso sentido na imagem fotográfica e a relação com o estado da morte? O “território” da memória – inseparável das relações simbólicas que possuímos diante das imagens – desdobra-se sensivelmente em questões complexas sobre o empenho de construção que delegamos ao que acreditamos ver.
Há muito, o arco epistêmico da produção e da estética no campo fotográfico reverteu modelos, conceitos e noções. Já se discutiu o peso do realismo (o índice inexorável?), a relevância de uma conformidade artística a despeito da pintura… No entanto, a fotografia teoricamente discutida em seus vários aspectos ideológicos, técnico-tecnológicos, de dinâmica cultural e mesmo da hegemonia mercadológica que dispõe determinados elementos paradigmáticos de dada época também impregna nossa visão operando outras vertentes bem mais subjetivas que vão além de quem produz a imagem. Ou seja, quando a imagem sai da composição e encontra razão de ser em quem a percebe, a sente.
A dimensão simbólica vigorosa revelada paradoxalmente pela apropriação de mortes reais por Rosangela Rennó ou a doçura na despedida de um rito de luto e seus significados constituem os laços interpretativos com os quais estas imagens são percebidas subjetivamente. Henri Bergson nos ajudam a refletir sobre essas idéias. Ecoa no pensamento de Henri Bergson a seguinte colocação: “Mas a verdade é que jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída. Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como passado a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo das trevas para a luz do dia”.
Talvez assim, o tempo na morte e na nossa memória seja o representável à nossa imaginação. A última imagem da morte não se revela pelo tempo passado, mas, contudo, pelo que creditamos de amor e afeto vividos. A nossa memória carrega um conjunto de imagens, imaginadas ou não…
Ao amigo Mauro Koury, que sempre me aclara em ver a vida que há na fotografia e suas mortes.
Recife, 26 de dezembro de 2009.
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