Fotos: Luis Humberto – Ensaio Paisagem Doméstica, 1974-1982
Nunca é só lembranças
“O mundo não passa de ilusão sensual e traço sensual desse desaparecimento. É onde os objetos nos enganam, pelo desvio e pela distância de sua própria fonte – mas finalmente nos tornamos o objeto dos objetos que nos enganam e caímos sob o encanto dessa distância”.
Jean Baudrillard
O gesto retomado não traz respostas indolentes. Voltar a um lar não é seguro, é, no mínimo, atravessar a imprecisão de um espaço diluído pelo tempo. As coisas já se foram, as pessoas transformaram-se e aquele lar de outrora já não é mais seu. Mas sempre voltamos de alguma maneira. Por certa nostalgia, de algo vivido ou pretendido, os lares que habitamos tornam-se ruínas de símbolos.
O gesto como metafísica de voltar a viver e sentir confunde-se com a fotografia. Impregnada de tempos e lugares; de estórias e histórias; de possibilidades e negações, a fotografia preserva a atmosfera do lar não pelo ícone que a consome, mas pela dicotomia entre o registro e o afeto. Marc Augé cita Michel de Certeau ao dizer que praticar o espaço é “repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância: é, no lugar, ser outro e passar ao outro”. É nesse fluxo relacional entre sermos e percebermos que a imagem fotográfica intensifica a urgência em nos apegarmos a imagens de onde habitamos.
Ao abrir os envelopes, dentre tantas fotos, separou uma em preto e branco. Imagem simples, sem rodeios, direta. Era o que um dia fora o lugar de seus vinte anos de vida. Por dias, guardou bem próximo de si aquela fotografia. Insisti no porquê de voltar àquela casa. Viajaram por horas, o tempo era largo e a casa, um objeto na memória.
O lugar, como explica Marc Augé, nunca é completamente apagado. E a fotografia de um lugar, podemos refletir, nunca é só lembranças. Enquanto documento, a imagem emana referentes que desdobram-se em fantasias. A espacialidade na qual promove o arcabouço simbólico e imaginário do ser humano transita entre a casa e a rua. Entre o privado e o público, entre os rituais do núcleo familiar e os rituais da vida partilhada em sociedade. O lar passa a ser o adensamento das emoções, do espírito de vivência, de um lugar que imanta em suas paredes os cheiros, os sonhos, os sons, o carinho e as vicissitudes de uma vida.
Não era possível lembrar quanto tempo já se passara e seguiam procurando a casa da foto. Ela começava a insinuar que talvez não existisse mais. Se de fato ele tinha certeza que era naquela rua – ou nos arredores dela, – era melhor voltarem daquela viagem sentimental. Regressar o acalmaria, era uma tentativa…
Mas, não. Ele parou o carro. E como se estivesse tentando reconhecer sua história na poeira daquela rua, disse-lhe que lembrava-se perfeitamente de como era seu lar da infância, de objetos partidos, das roupas passadas com cheiro de lavanda, do armário azul celeste que todo dia alguém abria. Não lembrava quem guardava as louças da cozinha, relatava apenas que eram mãos femininas suaves e ligeiras.
Os álbuns de família, produto do exercício fotográfico de amadores, são o berço de nossas relíquias visuais mais remotas. Envoltas por identidades e pertencimentos, as imagens de um lar, de suas celebrações e dos seus retratos representam significados íntimos do tempo e a reconstrução desgovernada da contemporaneidade. O que fomos, não é mais o que vemos e sim o que podemos articular por novas significações diante desse legado fotográfico.
Voltamos para nossa casa. Na estrada, ficamos no silêncio. Depois, de repente, ele me disse de forma econômica: “Não consigo dizer mais nada, minhas lembranças se reavivaram desde que abri aquele envelope. Vou lhe mostrar alguns slides. Pode ser que você perceba o que estou sentido.
Por sua vez, Gaston Bachelard, em livro essencial A poética do espaço (1993), propõe que todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de recolher-nos em nós mesmo, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa”. Diria que de modo bem semelhante ocorre nossa relação com as fotografias. As imagens fenecem a partir do momento que nascem. Assim como nós.
Fotografias que remetem ao nosso lar seminal, àquele ambiente que guardou todos nossos vestígios, descortinam sentidos e histórias de acordo com nossa capacidade de lidarmos com elas. Pela solidão que travamos com elas, é possível redimensioná-las, categorizá-las num jogo de memórias. Mesmo que seja, pela ficção e pelo afeto que passamos a oferecê-las.
Georgia Quintas.
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